Pulando tubarões

Antes: esse texto tem spoiler de várias séries. Não diga que não avisei.

Em “Happy Days”, aquele seriado 70-80 que mora no coração dos americanos nostálgicos, tem um episódio que o estimado Fonzie pula por cima de tubarões. Literalmente. Olha só:

Esse episódio se tornou lendário por motivos óbvios: WTF?

Por isso, “jump the shark” virou uma expressão no mundo dos roteiristas. Criada por Jon Hein (do grupo Comedy Company, radialista e atualmente colunista do TV Guide), ela é usada para descrever o momento que um programa de televisão começa seu declínio na qualidade e começa a usar truques pra manter os espectadores assistindo – geralmente definido por uma cena ou episódio. E esses truques podem ser sutis – se caracterizando por mudanças no núcleo duro inicial da história: personagens que se casam ou tem filhos, por exemplo – ou bem grotescos.

Eu ouvi falar nisso pela primeira vez tem pouco tempo e tô fascinado. Basta parar pra pensar e você consegue identificar esse momento em tudo quanto é série. E não é questão de você deixar de gostar daquela história – na verdade, geralmente a gente continua gostando – mas sempre tem um momento que você pensa: “nossa, agora exageraram, heim”.

Acho que é do Luis Fernando Veríssimo a teoria de que toda ficção se passa num universo paralelo. Por mais real que o filme tente parecer, aquele mundo é pelo menos um mundo onde o Denzel Washington é um policial, e não um ator, e que ninguém corre pra tirar um selfie com o cara. Então naquele mundo nenhum filme do Denzel Washington existe, por exemplo. E, geralmente, o jump the shark é quando uma série começa pé no chão e depois, em nome da criatividade, audiência ou sei lá o quê, solta a franga na licença poética e muda as regras no meio do jogo.

Passei por isso essa semana. Estou aproveitando que tem “The Office” no Netflix para ver tudo – só tinha visto a versão inglesa, não a americana – e ontem cheguei no episódio da terceira temporada quando os escritório de Scrantom e Stanford se juntam. Mil personagens novos, cenário novo, a ida e volta de Jim, o fim do noivado da Pam, demissões: nossa, o jump the shark foi aqui, na certa. Mas quem viu a série até o final já me falou que tem outros por vir.

“Big Bang Theory”, por exemplo, errou igual (ou acertou igual?) a “Friends” com Ross e Rachel: um dos principais conflitos era o nerd Leonard pegar a vizinha gostosa, Penny. Isso manteria o interesse na série sempre vivo, “vamos ver se hoje ele consegue”. Mas decidiram fazer com que isso acontecesse bem cedo – medo da série não durar ou incapacidade de escrever histórias interessantes o suficiente pra não espantar a audiência que torce pelo casal? De qualquer forma, repetiram a fórmula da série dos anos 90 e passaram a explorar o cenário do término, do ex, do vai e volta etc. As histórias seguem divertidas quando isso acontece? Em grande parte dos casos sim, mas não deixa de ser o fim de um conflito que um dia foi a base da história. Ou seja, a partir daí virou outra história.

É o que precisou acontecer com “The Nanny”. O conflito era ela ser a fim do chefe e ele ser caretão e ficar fugindo dela. A graça da série era isso! Mas e pra onde mais você consegue ir? Não dá pra manter isso por muito anos. Então eles se pegavam, namoraram sério, noivaram, planejaram casamento, lua de mel, tiveram filho. E fim. Era necessário. Ou estaríamos mandando nossos filhos pra faculdade e ligando a TV pra ver as aventuras do filho de Fran Fine. As histórias precisam acabar uma hora – ideia difícil de aceitar enquanto a coisa dá lucro, “Grey’s Anathomy”, “True Blood”, “Supernatural”, “A Grande Família” e “Sai de Baixo” que o digam. Até os fãs de “The O.C.” reconhecem que ela passou dos limites.

Falando em “Friends” – série que amo -, acho que houve muitos momentos de jump the shark, mas dois foram bem grandes: um de estafa e um de enredo. O de estafa, identifico como o episódio “Aquele que Poderia Ter Sido”, que imagina a vida dos seis amigos se Phoebe fosse uma executiva, Monica ainda gorda, Chandler um cartunista, Joey uma mega celebridade, Ross ainda casado com Carol e Rachel com Barry. É um episódio hilário, mas ele se passa num universo “ainda mais” paralelo, é um momento claro de estafa criativa, parece que os roteiristas diziam: “vamos dar uma pausa no que estamos fazendo, pois estamos cansados, e fazer uma coisa maluca aqui. Depois a gente volta”. Mas nunca mais voltou de verdade. O conflito Ross/Rachel ia e voltava para manter a audiência (e funcionava bem) mas se desgastava no processo – e quando Joey entrou na jogada, aí perdeu a mão de vez.

O segundo pulo foi em setembro de 2001: o ataque terrorista aos Estados Unidos deixou o país de um jeito bem diferente no mundo do entretenimento. Era hora de pegar leve, era hora do Robert DeNiro fazer comédias familiares. Aliás, basta ver a lista de maiores bilheterias da época: “Monstros S.A.”, “A Hora do Rush”, “American Pie 2”, “Dr. Doolitle 2”. Americanos queriam distração e risos, e “Friends” já estava aí, então bora deixar as histórias ainda mais leves. E a série praticamente parou com suas críticas e observações sobre a sociedade para focar na melhor piada possível que exigisse o menos conhecimento prévio possível. Convenhamos, o seriado começou “Seinfeld” e terminou “Zorra Total”: um monte de casamentos, gravidez, mudanças de casa várias vezes, apareceu um tal de Mike do nada, o David reaparece, o Joey passou de bobinho para completamente retardado, Phoebe para de cantar… Enfim, os personagens viraram caricaturas deles mesmos e de suas histórias. O mesmo que aconteceu com “Big Bang Theory” e “Two Broke Girls”, mas consideravelmente mais cedo.

“Seinfeld” também virou uma série de personagens e não mais de situações, mas se manteve até o final sem tubarões: ninguém casou, teve filho, mudou de cidade etc. O único momento desses, na verdade, é o final da série: o julgamento e a prisão. Mas a gente dá uma colher de chá pois era o fim. No geral, o universo apresentado evoluiu, mas não mudou. Exatamente o oposto do que é, em essência, “Family Guy” e “Os Simpsons”, pois desde o começo não há limitação de universo: séries animadas como essas nunca são citadas quando o assunto é jump the shark pois desde o começo elas não tinham compromisso em parecer reais.

Voltando ao 11 de setembro de 2001: o ataque renovou também um patriotismo nos Estados Unidos, o que fez com que “Arquivo X” tivesse o seu jump the shark: era uma época que as pessoas queriam confiar no seu governo e as incríveis histórias de conspiração e espionagem começaram a perder o gás, mesmo nos episódios muito bem roteirizados – isso sem falar nas manobras malucas pra manter a série no ar sem o personagem principal, Fox Mulder. A série terminou em maio de 2002.

A pior personagem de todos os tempos em Gilmore Girls
A personagem mais desnecessária de todos os tempos em Gilmore Girls – só perde pra April, talvez

Atualmente, uma que não vejo cometer grandes gafes de roteiro é “Modern Family”. Por mais mirabolantes que as histórias se tornem, o universo do começo da série não muda muito – pelo menos até onde eu assisti, pois não estou simultâneo com a TV. As crianças crescem, mas nada tão “grave” quanto um flashfoward de 5 anos, como “Desperate Housewives”, ou flashback de 10 anos, como em “Scandal” – que, apesar desses recursos, mantém uma linha criativa e roteiros de primeira, nada ali é mal costurado, na minha opinião.

“Gilmore Girls” teve dois pulos ao meu ver e um deles fez a série, na verdade, melhorar: o primeiro foi quando o seriado saiu da esfera de drama familiar para tentar ser teenager – nos episódios do colégio, os de Francine em especial. Naturalmente, foram para o segundo pulo, a entrada de Rory na faculdade e suas primeiras histórias adultas, mostrando agora a vida dela e de Lorelai em paralelo e não mais juntas – o que é um grande jump the shark em comparação à ideia original do seriado (uma mãe e sua filha pré-adolescente sempre juntas), mas funciona muitíssimo bem essa mudança e dá uma renovada nas histórias que só vendo. O (re)aparecimento de Jess e April (argh!) podem ser pulos também, mas passam ilesos a essa fase de “mãe que precisa deixar a prole cometer erros pra aprender”, que é a melhor época da série pra mim. Alguns tubarões vem para o bem – igual na vida. Tá, talvez essa última parte seja meio exagerada.

***

Mas esses jump the shark me fizeram pensar também na minha vida. Que momentos nosso universo muda completamente? Novos empregos, novos companheiros, novas casas, novas escolas, novas amizades. A vida é cheia desses pulos e a gente nem percebe na hora. Enfim, apenas divagações.

2 comentários em “Pulando tubarões

  1. Gabriel, adorei o post!

    Eu vejo séries desde que me entendo por gente (inclusive sou fã de várias que vc citou) e tbm só fui conhecer esse conceito de “jump the shark” recentemente.

    Vendo os exemplos que você colocou, tava aqui pensando… À exceção de séries que já tenham seu começo-meio-fim definidos, acho impossível uma série não “pular o tubarão” nunca. Mais do que um recurso pra narrativa, às vezes é necessário (e conserta bem alguns enredos fracos, como vc mesmo disse).

    Sei lá… Meu vício agora está sendo procurar os tubarões! hahaha

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    1. Hahahaha, tá sendo meu vício também. É complicado mesmo não pular tubarões quando o negócio dura 10 anos, né? (mas Seinfeld conseguiu 9 temporadas. E acho que 30 Rock também, pois tinham essa coisa Family Guy de não se comprometer em parecer real, sabe?)

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