Introdução ao pensamento raso

Ele era bem bonito. Bem acima da média, na minha opinião. E muito mais do que eu, também na minha opinião. Bastou um café e uma conversinha mole pra eu ver que ali não tinha futuro. Mas, novamente, resolvi tentar ir pra frente. E, novamente, pelos motivos errados.

Quero dizer, cada dia tenho mais dúvidas sobre se existem motivos certos ou errados para gostar de alguém. Mas sabia que eu estava ali pelos motivos errados de acordo com meus objetivos: se queria algo sério na vida, não dava pra ser com essa pessoa. “Ele é muito diferente de mim”, pensava eu. Mas o achava tão bonito que disse pra mim mesmo: ok, vamos ver onde isso aqui é capaz de chegar.

E chegou até a minha casa, um território conhecido por bem poucos. Foi uma noite boa, mas daquelas em que a falta de assunto é muito clara. Ignorei isso.

E, algum tempo depois, chegou à casa dele, que foi quando tudo acabou de vez pra mim.

– Desculpa a pergunta – disse, sorrindo como quem estivesse questionando algo simples e sem significados secretos -, mas você não tem nenhum livro?

Ele riu olhando para a estante da sala. Eu realmente não esperava livros por lá, claro. Ela estava abarrotada de DVD’s da Kylie Minogue e da Dido e da Jewel e da Cher. E de DVD’s de filmes da Pixar. E de DVD’s de “True Blood” e de “House” e de “Walking Dead”. Mas eu já tinha visitado a casa toda e não vi livro algum, em lugar nenhum. Nem um de auto-ajuda na cabeceira da cama, nem um de receitas na pia da cozinha. Tinha reparado mesmo eram as várias polaroids pregadas na porta da geladeira, fotos dele mesmo e dele com amigas.

– Tenho, ué – respondeu, como quem responde que 2 + 2 são 4 -, mas não estão aqui.

E me recolhi, junto aos meus preconceitos. Óbvio que ele tinha livros! Quem não tem? Ninguém pode passar uma vida sem ler nada. Ele era importante no trabalho, lembro dele comentar que está fazendo pós-graduação. Ninguém chega até aqui sem livros, oras.

Lembrei também que os livros que eu mais amei e me identifiquei foram todos emprestados, nunca cheguei a ser dono de uma cópia deles. E outra: talvez ele não seja alguém que lê muito por prazer e isso é normal. Mas pelo menos um “O Pequeno Príncipe” há de existir em algum lugar desse apartamento, não? Deixei pra lá. Repeti isso vezes o suficiente para a noite seguir e ela seguiu. E foi uma ótima noite.

Mas acordei com a pulga ainda atrás da orelha. Decidido a achar onde estavam essas páginas que ele dizia ser dono. Tenho o hábito (irritante para os outros) de acordar cedo aos finais de semana e deixei ele em sua cama para ir em busca de cumprir minha recém recebida missão solitária.

Pé ante pé fui até a prateleira do quarto. Nada. Não estava esperando um “Moby Dick”, mas não havia sequer uma apostila ou uma cópia xerox de um capítulo de Edgar Morin – autor que devia estar sendo estudado na tal pós. Mas ok. Ele tinha acabado de se mudar, muita coisa ainda estava encaixotada. Mudar é sempre época de desapego, doei metade da minha coleção quando mudei de cidade. Pensei: os livros sobreviventes estão nas caixas, claro! E finalizei o assunto mentalmente pedindo para que eu deixasse de ser tão pedante.

Era como se eu estivesse debatendo comigo mesmo, pois logo depois pensei que pelo menos um volume, o livro que ele está lendo agora, estaria fora de caixas, não? Todo mundo está sempre lendo um livro, certo? Até aquele seu amigo idiota que nunca lê, ele sempre está com um livrinho aqui e ali que ele demora meses para terminar – ou nem termina -, mas está sempre com aquele livro ali, nem que seja pra postar a foto da capa no Instagram.

É, não tem livro nenhum aqui. Hum, será que estão dentro do armário?

Claro! Deve ser isso. Para não empoeirarem, óbvio. Mas eu não devia estar abrindo as portas do armário dele sem permissão, né? Um cara que conheço tem três semanas, poxa. Mas estou. Com cuidado e absolutamente sem causar nenhum tipo de barulho, mas estou.

Deus, é isso? É uma miragem? Não! É verdade. São livros!

Três. T-r-ê-s.

Quais? Não lembro. Um tinha um título bem longo e técnico e não parecia ter sido fabricado nessa década. O outro parecia ser um romance best-seller bobo devido ao seu título genérico (que não ouso chutar com medo de acertar). E o outro também tinha um longo nome, com um subtítulo que parecia mencionar “marketing” e “estratégia” vezes demais.

Disse para mim mesmo: tudo bem, calma. Esses são os três livros que ele está lendo agora. Os outros estão nas caixas, com certeza. Sim, com certeza. Me convenci disso e saí do quarto, ainda sem fazer nenhum barulho. Sentei no sofá da sala, super aconchegante, e olhei para a televisão e a coleção infindável de DVD’s. E aí reparei os porta-retratos: eram cinco, todas as fotos eram… bem, eram dele mesmo. Festas, aniversários e acontecimentos que pareciam felizes e em grupo, mas havia apenas ele na moldura.

– Quem tem tanta foto de si mesmo assim em exposição na própria sala? – cochichei para mim mesmo pegando meu celular para checar as horas e eram 8 da manhã – Puta que pariu.

Decidi ir ao banheiro (era cedo, estava apertado) e depois sair de fininho em disparo para minha casa. Mas depois achei uma bobagem minha. Desde o começo eu sabia que esse cara não era o cara da minha vida. “Eu só estou com ele pois ele é gostoso pra caralho”, admiti. Era verdade, eu não estava esperando discutir Woody Allen com ele, muito menos minhas teorias de como realmente funciona a dicotomia céu/inferno ou outras ideias filosóficas sem sentido ou fim. Então, novamente, decidi dar de ombros.

No corredor que dava pro banheiro – um lindo e arejado cômodo completamente azul – havia alguns quadros que eu nem tinha visto antes. Opa, não são quadros, são retratos. Dele mesmo, novamente, todas as fotos dele sorrindo muito. A maioria dele sem camisa, em praias, piscinas e lagos (uma aura de pescaria nessa), exibindo seu tronco e braços fortes.

Até então e pelo o que eu lembrava da minha existência até aqui, esse foi o xixi mais longo da minha vida.

Texto de junho de 2014

Um comentário em “Introdução ao pensamento raso

  1. hahaha, lembrei muito deste post outro dia. Fui parar numa casa que nao tinha mobília quase nenhuma na sala (cadeiras de plastico), perguntei “ha quanto tempo voce mora aqui”, “desde 2010”, em vão tentei procurar por um livro em algum canto. Nada. NAO DA.

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