Ausência assimilada

Talvez você nunca tenha dado atenção, mas algumas palavras da língua portuguesa só existem no plural. “Óculos”, “férias”, “parabéns”, “pêsames”, “costas”, “núpcias”. Até onde eu sabia, “saudades” também era um desses casos, mas Tom Jobim discorda.

A saudade que ele canta talvez seja no singular por ser específica sobre uma pessoa. E foi essa saudade que bateu esses dias aqui. O isolamento – e algumas tragadas – me trouxeram de volta uma sensação familiar enquanto eu cozinhava, uma companhia, apesar de cozinhar sozinho. Pensei na saudade que eu tinha da companhia dele quando eu fazia essas atividades nos dias pré-pandemia, que já me parecem ter sido anos atrás.

Lembrei de rir do jeito que ele descascava alho. Lembrei dele rindo do jeito que lavo os pratos. O visualizei na minha cozinha, relembrei de algumas risadas compartilhadas e fiquei imaginando do que estaríamos falando agora se estivéssemos passando esses dias juntos – sobre o que íamos reclamar, que piadas faríamos, que tarefas daquela receita seriam dele, que músicas estaríamos ouvindo ao cozinhar, o que assistiríamos na TV em seguida.

“Eu estou ficando louco”, pensei.

Por não nos falarmos mais, tudo indicava que o que eu devia fazer era parar de pensar nele. Não há nada de construtivo em sentir saudades de quem você não sabe onde está, de quem não quer contato contigo – fatores que não são meros detalhes se tratando de uma narrativa de afeto.

Mas, por outro lado, que bem vai me fazer ignorar esse meu sentimento? Tudo aquilo que a gente não lida vira uma restrição – e o que é proibido nos consome rapidamente. Deve haver como transformar essa saudade em algo bom, em criatividade, ou no mínimo em algo indolor.

Se esse texto fosse um filme de Hollywood, essa seria a parte clichê de dizer, para alguém que perdeu um membro da família ou algo assim, que a “pessoa vai viver para sempre em sua memória e em seu coração”, mas não é bem disso que falo, nem bem isso que proponho. Isso é olhar fotos e chorar, é manter a mobília do quarto intacta, é sabotar o futuro – não é o que quero.

Para você que também está com saudade de alguém, pergunto: o que existia naquela pessoa que, até então, era só dela, e que aí virou de vocês e, depois, virou seu também? Existe um jeito de saborear a saudade de uma maneira construtiva: na forma de uma receita que a pessoa te ensinou, num livro presenteado que virou seu favorito, na indicação de uma música que você passou a ouvir mais e genuinamente começou a gostar.

O jeito digital de se relacionar causa a impressão da possibilidade de cancelar uma pessoa da sua vida, de fingir que ela nunca existiu, mas as coisas não são bem assim. A vida seria muito ruim sem saudade, se considerarmos a falta do outro como uma oportunidade de nos fazer crescer. Existem dois jeitos de envelhecer: ou você se fecha ou você se abre. Morre mais rico quem aprende a incorporar a saudade de uma forma criativa na sua existência.

Provavelmente todo esse papo parece bobo, mas acho que agora todos nós sabemos como é ruim parar de conversar e de ver pessoas que nos são queridas sem que essa tenha sido uma decisão de ambas as partes. Hoje tento cada vez mais convidar a saudade para mais perto de mim ao invés de tentar expulsá-la, permito que a pessoa que me faz falta se faça presente, e tento preencher o vazio dela com ela mesma, com o que de bom ela já trouxe e ficou.

Se ainda há saudade, ainda há carinho, mesmo que seja apenas pelas memórias dos bons momentos. Pode ser triste não estar perto agora, mas seria pior nunca ter estado perto. Se você permite despertar a pessoa do esquecimento – sem ignorá-la, mas também sem fazer homenagem grandiosa -, você assiste a emoção te consumir. E passar.

Talvez por isso, afinal de contas, “saudades” só exista no plural. Todo mundo é, de um jeito ou de outro, formado pelas lembranças que ficaram das pessoas que fizeram diferença na nossa vida. Pena que muitas vezes não dá tempo da gente mesmo perceber, de avisá-las, ou de agradecê-las.

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

(Carlos Drummond de Andrade)

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