[Esse texto é bem pessoal e apenas sobre as citações feitas sobre Madonna no filme, para saber mais sobre a obra, recomendo que você clique nesse link aqui.]
Na última semana eu assisti o documentário “Matangi / Maya / M.I.A.”, que conta as desventuras e ascensão de M.I.A., provavelmente a celebridade mais famosa no ocidente nascida no Sri Lanka.
De forma bem resumida, o documentário mostra um pouco da vida pessoal da estrela: depois de mais de 10 anos do debut com o disco “Arular”, fica claro o quanto M.I.A. influenciou muito da música que veio depois, inclusive sendo uma das responsáveis pela explosão do Diplo mundo afora. É fácil perceber que sim, o mundo queria suas danças, seu som e seu jeito de se vestir, mas não queria sua militância. Parte da decepção de M.I.A. na sua ascensão a celebridade internacional foi o fato de que ninguém a queria ouvir se ela estivesse falando sobre a guerra no Sri Lanka.
Parte desse movimento vinha sob o rótulo de que a artista era hipócrita: queria ser a advogada de uma realidade que não era sua – falava sobre a guerra e a pobreza de um país, enquanto nadava no dinheiro morando em outro. Embora só tenha tido contato com a guerra durante 2 meses que passou em Sri Lanka gravando um documentário com seus familiares, anos antes de sua fama como cantora, ela morava em Londres como refugiada desde bem pequena. Ela saiu do país inclusive por conta do envolvimento de seu pai com os grupos armados de resistência, mas sua vivência com esse universo violento nunca existiu de verdade – sua própria família fala isso no documentário.
E é aqui que entra Madonna na história.
Em um momento, M.I.A. mostra seu desespero em uma brincadeira com sua empresária, ao telefone: “Como eu faço para minha música tocar no rádio?”, ela perguntava. Neste ponto, a artista estava outra vez envolvida em escândalos bobos. Ao longo da carreira, ela foi alvo de vários: além da acusação de hipocrisia quanto ao seu ativismo, muita gente não entendia seu sarcasmo, a considerando uma ameaça e, até mesmo, uma terrorista. Com esse caminhão de polêmicas na cabeça, os negócios andavam complicados.
Na cena seguinte, ela recebe um convite de Madonna, que quer gravar uma faixa e um clipe com ela e Nicki Minaj, e apresentá-la ao vivo em um dos eventos com maior audiência do planeta. “Uma ítalo-americana, uma afro-americana e uma tâmil no Super Bowl?!”, pergunta sua irmã, comemorando o convite com sorrisos e choque. Mas parece que a festa durou pouco.
O documentário é um remendo com filmagens de várias épocas e, em uma delas, M.I.A. fala sobre os Estados Unidos: “Eu usava All Star quando era jovem e amava os EUA, mas as coisas mudaram um pouco depois de 2001”, provavelmente se referindo ao aumento do preconceito às religiões não-cristãs e às políticas do país com imigrantes depois dos atentados de 11 de setembro. Na cena seguinte, ela esta se preparando para gravar o clipe de “Give Me All Your Luving“, do álbum “MDNA”, de Madonna, reclamando de seu figurino de cheerleader. “Sobre o que é o clipe?”, pergunta a pessoa filmando. “Sobre os Estados Unidos”, M.I.A. responde. A plateia ri.
O clipe de Madonna e o novo de M.I.A., “Bad Girls“, saíram no mesmo dia no YouTube, com uma diferença de 10 minutos entre eles – mas hora nenhuma dizem qual das duas divas publicou primeiro. Na sequência, o documentário mostra trechos do clipe em parceria com Nicki Minaj: M.I.A. de líder de torcida e jogadores de futebol-americano protegendo a rainha do pop de levar tiros. Depois, mostra o trabalho da cantora srilankesa: mulheres com armas e sheikes fazendo drifts com carros. A plateia ri da diferença entre os vídeos e aplaude o segundo.
Para mim, o que essa cena diz muito claramente é que a provocação do intervalo de 10 minutos de lançamento entre os clipes tinha virado algum tipo de rivalidade entre as duas artistas, pelo menos do lado de M.I.A.
“Eu vi Madonna, uma pessoa que eu ouvia as músicas quando eu estava crescendo, obedecendo as pessoas sobre o que ela devia ou não usar e fazer”, comenta M.I.A, sobre os ensaios e a apresentação no Super Bowl em que ela decidiu mostrar o dedo do meio para as câmeras. Depois de fugir dos executivos do evento que queriam dar uma dura nela nos bastidores, ela chega em casa e abraça seu filho. “Eu não gosto da NFL”, diz a criança sobre a Liga Nacional de Futebol-Americano dos EUA. “Esse é o meu filho!”, ela sorri.
Um outro lado (dessa parte) da história
Nas entrevistas para promover o documentário, a cantora se dirigiu especificamente a estas cenas, criticando artistas que, “como Madonna”, a usaram. M.I.A. diz que sua popularidade e seu som chamaram atenção, mas que as pessoas acabavam apenas “roubando” muito de sua arte e nada de sua militância. E é justamente essa história de rancor que não fecha para mim.
Primeiramente pois a própria M.I.A. usa dessa fórmula, mesmo que a apresente embrulhada em um papel diferente. Seu próprio documentário mostra a cantora viajando ao redor do mundo e gravando vozes e sons de pessoas em vários países, incluindo Jamaica, e sua parceria com Diplo, que levou muito do nosso funk carioca para seu som – nada disso é amplamente creditado como criação de terceiros, o mérito vai pra ela sozinha.
Outra coisa é que é muito claro que Madonna estava em uma fase bem diferente com os EUA. Seu álbum mais político de todos, “American Life” (2003), provocou muita ira conservadora no governo Bush, houve boicote e ameaças até contra os filhos da cantora. De lá pra cá, Madonna envelheceu e foi se adaptando ao mercado para voltar ao coração dos americanos – o maior mercado do mundo. Não é uma coincidência que antes de “American Life” a loira tinha álbuns com poucos produtores e uma seleção diminuta de faixas em seus discos. Depois do fracasso comercial de 2003 é que ela foi caçar parcerias com Britney Spears, Timbaland, Justin Timberlake, Diplo, Nicki Minaj e a própria M.I.A. Uma tentativa dela de se manter relevante e se mostrar não-mais-tão-polêmica. O álbum imediatamente seguinte, “Confessions On A Dancefloor” (2005), tinha até uma música chamada “I Love New York”!
Um dos grande trunfos do documentário é exatamente tentar mostrar como equilibrar a vontade de ser relevante e ganhar dinheiro com a vontade de construir um legado e fazer a diferença no mundo. Algo que M.I.A. podia ter trocado uma ideia com Madonna sobre: como sabemos, a loira gosta de se posicionar politicamente sobre vários assuntos (foi pioneira em falar abertamente sobre AIDS, foi uma figura importante na visibilidade do caso das Pussy Riot, fez campanha pelo Obama e se posicionou contra Bolsonaro recentemente, para citar poucos casos). Mas também bota a mão na massa: seu maior xodó é o país africano do Malauí, de onde adotou quatro crianças e onde construiu 10 escolas (mais 4 estão planejadas para 2019) e um hospital pediátrico completo, além de uma escola no Paquistão.
Nada disso é coberto na grande mídia, nada disso é assunto quando Madonna vai a um talk-show e não vejo ela reclamar disso em lugar nenhum. Mas eu sei, ter trabalhos beneficentes é bem diferente de tentar expôr uma guerra. O fato é que, antes do Super Bowl, elas estavam amiguinhas – ou pelo menos parecia que dava para todo mundo se aguentar.
Em todas as entrevistas para divulgar o showzão que faria, Madonna garantia que não haveria baixaria. Sabendo de seu histórico de shows provocativos e querendo a todo custo não repetir a polêmica de Janet Jackson no evento (que expôs um de deus seios sem querer), a NFL estava pressionando muito a cantora por um “show família” – afinal, o jogo é transmitido com classificação etária livre por lá. E entre gladiadores dançando “Vogue” e LMFAO fazendo participação, era mesmo pra ter dado tudo certo. Só não deu por conta do maldito dedo do meio da M.I.A.
Os americanos são muito sensíveis a tudo isso e o caso ganhou proporções absurdas, inundando revistas e programas de fofoca. “Infantil”, foi assim que Madonna explicou e reduziu a ação em entrevistas. O que imagino que corra nos bastidores entre as duas seja ressentimento por conta desse ato. M.I.A. fugiu das claras regras da organização, pareceu tentar roubar o holofote de sua anfitriã e saiu com uma multa de 16 milhões de dólares da NFL nas costas. Se você levar isso em conta, enxerga como os pontos dela sobre Madonna em seu documentário têm um tom quase vingativo.


Tudo isso ainda sem falarmos de uma coisa muito óbvia: M.I.A. não era obrigada a aceitar participar de nada disso. Inclusive, no sábado depois do Super Bowl, o programa de humor “Saturday Night Live” fez um esquete sobre o fato e a atriz interpretando a cantora explicava o incidente com essa piada sobre seu dedo do meio: “Eu queria mostrar que eu estava brava sobre uma situação que eu aceitei fazer voluntariamente”. Não podia ser mais verdade.
M.I.A. sente uma necessidade real de ser a porta-voz de seu país no ocidente, de ser ativista, o que faz todo sentido do mundo e ela tem esse direito. Mas a vontade dela de ser reconhecida como ativista é a mensagem que fica do documentário e isso me soou um pouco problemático, mas aí já é outra história.
Quando ela lançou o clipe de “Borders“, falando sobre imigrantes ilegais, lembro de um amigo dizer que o clipe era lindo e necessário, mas era basicamente a cantora posando na frente do caos. “Nesse caso, qual a diferença entre M.I.A. e Nana Gouvêa?”, comentou rindo. O mesmo comentário pode ser feito sobre “American Life”, se você pensar, sem querer diminuir nenhum dos dois trabalhos. Mas é cada diva falando sobre o que conhece, sobre um momento de seu país, sobre aquilo que é importante para elas. E vamos lá, “Give Me All Your Luvin” está mesmo longe de ser uma música política, mas uma “Bucky Done Gun” também não é, e ninguém vê problema nisso.

Na cena de comparação de clipes, a plateia do cinema riu de um clipe e aplaudiu o outro, se esquecendo que existe uma coisa em comum nos dois: a própria M.I.A. Por isso são quase engraçados os pontos que ela pinça para criticar Madonna: ela se sente superior por não “jogar o jogo” enquanto reclama de não ser ouvida, mas desfruta de inúmeros privilégios e não recusa a oferta de participar da música, do álbum, do clipe e do show de Madonna, uma das maiores popstars vivas do mundo. Isso não é “jogar o jogo”, afinal?
Meu palpite daqui, bem longe de saber a verdade delas, é que no meio de sua infantil vontade de aparecer, M.I.A. queimou a ponte com Madonna e continua botando lenha nas chamas. As duas teriam muito o que conversar ainda e muita música boa – e melhores que a lamentável “Birthday Song” – poderia sair dali. Mas os santos (sejam católicos, hindus ou cabalistas) não bateram.
