Arrumando quadros

Eu arrumei uma desculpa pra falar com você. A gente até gostava das mesmas coisas, mas não eram exatamente coisas diferentes ou secretas. Não dá pra chamar de coincidência gostarmos da mesma coisa se essa coisa também é gostada por metade da população mundial, mas serviu.

Eu arrumei minha casa pra você. Posso ter convidados muita gente, mas era você quem eu imaginava vindo e marcando presença, foi pra receber você que eu limpei os móveis, varri o chão, mudei as coisas de lugar e duvidei do bom gosto dos meus quadros.

Eu arrumei meus discos pra você. Na estante da sala, tinha espaço pra deixar uma quantidade pequena de coisas à vista. O que eu quero colocar ali, que partes de mim eu quero mostrar pra ele? Quais shows, quais filmes, quais games exibo ali, pra ele ver e me entender? Ou para pelo menos achar que me entende? Que versão minha eu mostro primeiro?

Eu arrumei uma vida pra você na minha. Mas você não veio. Não viu nada. Não entendeu, nem quis tentar entender. E eu também não entendi.

Pelo menos aprendi a nunca mais vou duvidar dos meus quadros de novo.

Dias, outros dias e na maioria dos dias

Tem dias que eu

Durmo sozinho. Acordo sozinho. Arrumo a casa sozinho. Trabalho sozinho. Cozinho sozinho. Ouço música sozinho. Falo sozinho. Choro sozinho. Vivo sozinho.

Outros dias eu

Durmo comigo. Acordo comigo. Arrumo a casa comigo. Trabalho comigo. Cozinho comigo. Ouço música comigo. Falo comigo. Choro comigo. Vivo comigo.

Na maioria dos dias eu

Durmo sozinho. Acordo comigo. Arrumo a casa sozinho. Trabalho sozinho. Cozinho comigo. Ouço música comigo. Falo comigo. Choro sozinho.

E morro comigo. Sozinho.

Ausência assimilada

Talvez você nunca tenha dado atenção, mas algumas palavras da língua portuguesa só existem no plural. “Óculos”, “férias”, “parabéns”, “pêsames”, “costas”, “núpcias”. Até onde eu sabia, “saudades” também era um desses casos, mas Tom Jobim discorda.

A saudade que ele canta talvez seja no singular por ser específica sobre uma pessoa. E foi essa saudade que bateu esses dias aqui. O isolamento – e algumas tragadas – me trouxeram de volta uma sensação familiar enquanto eu cozinhava, uma companhia, apesar de cozinhar sozinho. Pensei na saudade que eu tinha da companhia dele quando eu fazia essas atividades nos dias pré-pandemia, que já me parecem ter sido anos atrás.

Lembrei de rir do jeito que ele descascava alho. Lembrei dele rindo do jeito que lavo os pratos. O visualizei na minha cozinha, relembrei de algumas risadas compartilhadas e fiquei imaginando do que estaríamos falando agora se estivéssemos passando esses dias juntos – sobre o que íamos reclamar, que piadas faríamos, que tarefas daquela receita seriam dele, que músicas estaríamos ouvindo ao cozinhar, o que assistiríamos na TV em seguida.

“Eu estou ficando louco”, pensei.

Por não nos falarmos mais, tudo indicava que o que eu devia fazer era parar de pensar nele. Não há nada de construtivo em sentir saudades de quem você não sabe onde está, de quem não quer contato contigo – fatores que não são meros detalhes se tratando de uma narrativa de afeto.

Mas, por outro lado, que bem vai me fazer ignorar esse meu sentimento? Tudo aquilo que a gente não lida vira uma restrição – e o que é proibido nos consome rapidamente. Deve haver como transformar essa saudade em algo bom, em criatividade, ou no mínimo em algo indolor.

Se esse texto fosse um filme de Hollywood, essa seria a parte clichê de dizer, para alguém que perdeu um membro da família ou algo assim, que a “pessoa vai viver para sempre em sua memória e em seu coração”, mas não é bem disso que falo, nem bem isso que proponho. Isso é olhar fotos e chorar, é manter a mobília do quarto intacta, é sabotar o futuro – não é o que quero.

Para você que também está com saudade de alguém, pergunto: o que existia naquela pessoa que, até então, era só dela, e que aí virou de vocês e, depois, virou seu também? Existe um jeito de saborear a saudade de uma maneira construtiva: na forma de uma receita que a pessoa te ensinou, num livro presenteado que virou seu favorito, na indicação de uma música que você passou a ouvir mais e genuinamente começou a gostar.

O jeito digital de se relacionar causa a impressão da possibilidade de cancelar uma pessoa da sua vida, de fingir que ela nunca existiu, mas as coisas não são bem assim. A vida seria muito ruim sem saudade, se considerarmos a falta do outro como uma oportunidade de nos fazer crescer. Existem dois jeitos de envelhecer: ou você se fecha ou você se abre. Morre mais rico quem aprende a incorporar a saudade de uma forma criativa na sua existência.

Provavelmente todo esse papo parece bobo, mas acho que agora todos nós sabemos como é ruim parar de conversar e de ver pessoas que nos são queridas sem que essa tenha sido uma decisão de ambas as partes. Hoje tento cada vez mais convidar a saudade para mais perto de mim ao invés de tentar expulsá-la, permito que a pessoa que me faz falta se faça presente, e tento preencher o vazio dela com ela mesma, com o que de bom ela já trouxe e ficou.

Se ainda há saudade, ainda há carinho, mesmo que seja apenas pelas memórias dos bons momentos. Pode ser triste não estar perto agora, mas seria pior nunca ter estado perto. Se você permite despertar a pessoa do esquecimento – sem ignorá-la, mas também sem fazer homenagem grandiosa -, você assiste a emoção te consumir. E passar.

Talvez por isso, afinal de contas, “saudades” só exista no plural. Todo mundo é, de um jeito ou de outro, formado pelas lembranças que ficaram das pessoas que fizeram diferença na nossa vida. Pena que muitas vezes não dá tempo da gente mesmo perceber, de avisá-las, ou de agradecê-las.

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

(Carlos Drummond de Andrade)

Sal

Eu estava fazendo meu jantar. Já perdi a conta disso. Eu gosto de cozinhar, mas a obrigatoriedade faz a sensação da atividade ser completamente diferente. Especialmente quando você só cozinha para você mesmo.

Eu estou sozinho. Eu moro sozinho. E eu costumava gostar de ficar sozinho. Como a maioria, gostava pois era opcional, pois eu podia escolher a hora de interagir com pessoas e a hora de ficar quieto na minha concha. Um bom equilíbrio. Mas hoje não é mais assim.

Estar sempre sozinho significa, claro, que é tudo eu. Não tenho com quem dividir responsabilidades: a tarefa de cozinhar, de lavar as louças e as roupas, de limpar a casa, regar as plantas e ir ao mercado, é sempre tudo eu. Não tenho com quem dividir prazeres: ninguém para assistir filme junto, maratonar séries, beijar na boca, dançar na sala, comentar as notícias, reclamar do frio, é sempre só eu.

Fui colocar sal na comida e vi que acabou o do pacote, só tem o do saleiro agora. Preciso comprar um saco de sal amanhã. Me fez pensar naquela frase, não sei se é um provérbio de um país distante ou apenas uma frase que avós gostam de falar: “para conhecer uma pessoa, você precisa dividir um pacote de sal com ela”.

Não que a frase requeira explicação, mas vou explicá-la: um pacote de sal, mesmo quando se cozinha com frequência, dura muito tempo. A teoria é que precisa-se de tempo ao lado de alguém para conhecê-lo, no mínimo o tempo de duração de um pacote de sal.

Lembrei dessa frase quando vi o meu sal acabando. Por quantos pacotes de sal eu passei sozinho na minha vida? Nunca fui casado, nunca morei com um namorado, nenhum dos amigos que morou comigo era muito de cozinhar. Todo sal que comprei, gastei foi só comigo.

Por quantos pacotes de sal a gente precisa passar para conhecermos, não os outros, mas nós mesmo?

Marie Kondo, Maria Antonieta e as redes sociais

Agora Marie Kondo, a famosa japonesa especialista em organização, tem uma série na Netflix. A técnica da autora best-seller é bem simples: separar os itens de casa por categorias (e não por cômodos) e analisar um a um em mãos, mantendo só aquilo que traz alegria.

Desde que nasci, eu mudei de casa nada menos que 16 vezes, sendo que 4 dos últimos 6 anos eu morei em uma kitnet apertadíssima, então fiquei craque em não deixar minha casa entulhada. Fiz todo o processo de Marie Kondo com as roupas em um piscar de olhos, mas com livros foi mais complicado. Ela diz para, em caso de dúvida, começarmos com um item que temos certeza que nos trará alegria. No meu caso, foi a biografia de Maria Antonieta, escrita por Antonia Fraser.

mA.jpgFoi baseado em trechos dessa completíssima biografia que Sofia Coppola escreveu o roteiro de seu filme, que foi o que me fez querer saber mais sobre essa personagem. Foi lendo esse livro que entendi toda a complexidade de sua persona e de seu contexto. O que nos contam sobre a Revolução Francesa na escola não é 1% do que aconteceu e o mesmo vale para Maria Antonieta, que – não era santa, mas – foi uma vítima do cargo que ocupava na hora em que o ocupava. É uma ótima história sobre inocência perdida e consequência dos seus atos. Esse livro me marcou muito, também, pois foi ele que me inspirou a viajar mais.

Assim que o terminei, comecei a juntar dinheiro para visitar a França. Um ano e meio depois, eu estava visitando Versalhes e vendo de perto os cenários de todas aquelas histórias impressionantes. Foi planejando essa viagem que decidi que queria viajar mais. E isso mexeu com minha postura no trabalho, minha ambição, minhas prioridades, meu controle financeiro, com muita coisa.

Enquanto eu segurava a biografia da Maria Antonieta no meu quarto, me passou pela cabeça tudo isso, e todas as outras viagens que fiz depois e pessoas que conheci por causa dele, por causa dessa decisão de viajar mais. E tudo isso começou, na verdade, nas redes sociais.

Eu entrei na livraria, fiz check-in no Foursquare, e recebi 10% de desconto na minha compra. Fiquei em dúvida entre essa biografia e um outro título que hoje nem lembro qual era. Eu sei que era uma simples régua de CRM, mas é que nessa época de abusos e boicotes às redes sociais, é fácil esquecer as coisas legais que elas já nos trouxeram, né?

Fiquei pensando nisso depois, e em todas as coisas boas que as redes sociais nos dão e a gente esquece. É bem fácil esquecer: em pouco tempo elas criaram inúmeros influenciadores vazios e sacudiram democracias – pra falar bem pouco. Mas elas trouxeram um tanto de coisas legais que a gente já enxerga como normais e que não eram possíveis bem pouco tempo atrás.

Dá para você conversar e ver fotos dos amigos que mudaram de país, conversar e manter contato com eles. Ao vivo é melhor, eu sei, mas antes das redes você fazia uma ligação interurbana de vez em quando e nunca mais via esse seu amigo. Agora, dá pra ver os bastidores da gravação de um filme, os passeios turísticos do seu ídolo quando ele está no seu país. A gente faz e troca bem mais memes que trocamos fake news e meu discurso hoje é exatamente o mesmo de 10 anos atrás: quem cria suas redes sociais é você.

A curadoria de conteúdo começa com a gente. A gente cresceu com as redes e muitas vezes até nos parece estranho assistir, comer ou fazer alguma coisa e não compartilhar o que fizemos. Mas tem jeito. Se você quer emagrecer, você não fica de jejum pra sempre, você pára de comer apenas certos tipos de alimento, não é? Não siga quem você não quer seguir. Não faça parte de grupos que você não quer fazer parte. Pra ter uma experiência melhor com redes sociais é só usar de forma inteligente, e isso significa valorizar não apenas seu tempo, mas também a função daquela rede na sua vida. Se desligar completamente delas pode acabar te botando para fora de um monte de coisa legal.

Faz igual a Marie Kondo diz: veja os perfis que você segue, as páginas que você acompanha, os sites do seu RSS. Pega um por um e pensa: seguir esse conteúdo me traz alegria? Não alegria no sentido de ficar feliz, mas acompanhar aquele conteúdo te deixa bem informado, com a sensação de que você saiu de lá sabendo mais do que quando entrou? Seguir aquela pessoa te faz bem? Quando você vê as fotos dela você sorri ao vê-la sorrindo ou você revira seus olhos?

Se não te faz bem e você tem a opção de não estar ali, pra quê você ainda está? Se te faz mal, é adeus. Unfollow. Unsubscribe. Block. Leave group. Talvez um mero desligar de notificações já te ajude.

É mais fácil do que parece, te juro.

(Foto no topo: Andrew T. Warman para o The New York Times)

O bigode de Monalisa

Quando eu estava no colégio, minha irmã quis fazer aulas de judô. Pra igualar os gastos, meus pais me deram algumas opções de atividades extra-curriculares. Durante um período, escolhi ganhar um livro por mês. Durante um outro, frequentei aulas de Sensibilidade Artística.

O que era isso? Variava. Uns dias nós (eu, a professora e as outras alunas, sobrinhas dela) sentávamos em círculo, acendíamos um incenso, ouvíamos uma música de luz apagada – pra prestar atenção – e discutíamos os sentimentos da letra. Outros a gente saía, ia pra praça, e abraçava árvores. Outros dias a gente desenhava ou pintava. Eram os melhores dias esses.

Não só era um grupo pequeno de pessoas como eu era o único menino. Eu não lembro quantos anos eu tinha, mas devia ter tipo uns 14 anos – aquela fase que a gente só acha boa depois que passa. Costumo me referir a ela como “aquela época que você quer ser o centro das atenções e passar despercebido, ao mesmo tempo”.

Eu sempre gostei muito de criar coisas. Criava histórias com meu bonequinhos que não tinham a ver com os personagens televisivos que eles representavam, desenhava nas margens dos cadernos ao invés de fazer os deveres de casa, gravava meus CD’s no computador da minha mãe e tentava duplicar algumas coisas e adicionar outras na esperança de fazer um remix. Cresci e transformei tudo isso em trabalho: hoje eu ganho dinheiro sendo criativo, escrevendo textos, montando planejamentos etc.

Só que nos últimos tempos eu estava desanimadão com a vida. Faltando energia vital mesmo, me sentindo inválido, sem nada pra acrescentar no mundo. E aí percebi que me faltava essa camada criativa infantil que eu tinha perdido. Eu ainda sou um produtor, mas ter transformado isso em profissão diminuiu a minha produção.

Explico: eu passava o dia inteiro escrevendo para os outros, usando minha criatividade e insights em prol de um objetivo para os clientes da agência de publicidade que trabalho. E tudo bem, isso se chama emprego. Mas aí eu chegava em casa e só consumia: lia livros, via vídeos, ouvia música, via séries. Eu não produzia nada pra mim. Eu não produzia nada pra uma pessoa objetiva – eu produzia algo que ia ter muito likes na rede social da marca, que ia aumentar vendas de algum produto, mas não produzia nada para um amigo querido ou fazia algo que eu gostasse mas que só eu visse. Entende a diferença?

Resolvi mudar isso e, entre outras mudanças (postar menos fotos minhas nas redes sociais, por exemplo), voltei a pintar. Aliás, usar o temo “voltar” é meio forçado: eu nunca tive treinamento profissional, aulas de técnica. Eu só tinha vontade de criar alguma coisa, de ter um projetinho meu. Comprei as tintas e comecei a experimentar.

Um dia sai uma coisa abstrata alegre. Outro dia sai um abstrato mais pesado. Um dia dá vontade de fazer algo mais realista – comigo, na maioria das vezes, não fica nada realista. “Mas e seu eu fizer metade realista, metade sensação?”, pensava. E por aí está indo a coisa.

Quando estou com tempo – ou quando percebo que o estou desperdiçando com algo inútil – vou pintar. No chão do meu quarto. Com música tocando bem alto. Esvaziando a cabeça. Provavelmente fodendo com a minha coluna.

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Tirei fotos de algumas coisas que fiz e postei nos meus Stories de Instagram uma vez. Essa semana até postei uma na timeline, um dos meus favoritos de tudo que criei – e teve 70 likes. Metade de mim ficou triste, achei que mais gente ia achar legal o quadrinho. A outra metade usou o experimento pra concluir que o que eu preciso é de descolar daquilo que produzo, de uma vez por todas, essa necessidade de “aprovação” – se é pra produzir arte instintivamente, sem pretensão alguma de fazer dinheiro ou carreira nisso, só tem esse jeito.

É um desafio enorme para mim e minhas manias de organização saborear o processo ao invés do ponto final – que, aliás, não existe na arte. Quem fala que um quadro ou desenho está pronto ou não é seu criador, e só. Essa é a parte que acho mais brilhante e que mais me dá medo: sempre parece que tá faltando algo, mas e se eu adicionar esse algo e estragar tudo? Me desconectar da aprovação do resultado final é mais díficil ainda se nem você sabe onde é o final. Se DaVinci tivesse desenhado um bigode na Monalisa e aí sim desse o quadro por terminado, a história seria outra.

E é isso. Voltar a pintar me ensinou algumas duas coisinhas sobre a vida. Uma é que a gente nunca vai saber se está fazendo uma Monalisa ou se está fazendo um bigode. A outra é que não saber te dá a liberdade pra continuar fazendo o que você acha que está fazendo, independente do quê aquilo ali significa pros outros.

Faz sentido?

Show de funk

Pensa aí num tipo de música que você não curte. Só pra elucidar o exemplo, digamos que seja funk.

Você não odeia funk com todas as forças e nem odeia os funkeiros, muito menos os fãs de funk. Você só faz o quê? Não ouve. E beleza.

Mas seu vizinho curte, e ouve super alto. Então você sai na rua, mas toda hora passa alguém ouvindo funk bem alto do seu lado. Você tenta fugir, mas o som chega até você. Te incomoda, te atrapalha.

Aí chega uma galera na sua casa e está tudo ótimo, mas eles querem ouvir funk. Puta que pariu, não quero, mas né? Quero criar um ambiente legal para os meus amigos, não vou mandar eles se foderem, não vou fazer eles saírem da minha casa pra ir ouvir funk em outro lugar, né?

E aí sua festa favorita tem um espaço que só toca funk. Ótimo, me deixa bem separado do funk pra eu não precisar ouvir nenhuma nota desse tipo de som. O problema é que mesmo que você não curta, acaba frequentando – mesmo odiando muito estar ali – pois seus amigos curtem e você quer estar com eles. Só que, como eles curtem, eles nem percebem o esforço imenso que é pra você estar ali com eles e como estar ali está te fazendo mal.

Então você não quer mais se estressar com isso e vai com os amigos fazer alguma outra coisa então, comer um hamburger, ir ao cinema, pegar uma piscina, sei lá. E eles até curtem tudo isso, mas antes de começar o rolê eles precisam ouvir um funk, não tem jeito. Ou então no meio do rolê mesmo: eles preferem te deixar sozinho lá enquanto saem e vão ouvir um funk. Ouvir funk é mais importante que trocar ideia com você e, segundo eles, não dá pra esperar e ouvir funk depois, tem que ser agora. Contanto que você não ouça, você deixa eles irem, né? Só que quando eles voltam, o funk não fica lá fora, vem com eles, eles voltam cantando as letras, batucando os ritmos.

Tá.

Agora esquece esse exemplo, esquece música, esquece funk.

Troca o funk por cigarro.

É assim que eu me sinto.

Viciado em seduzir

– Cuidado que a batata está muito quente. Mas tá maravilhosa, você vai gostar, vai ser a melhor batata que você já comeu.

Achei muito esquisito o vendedor do McDonald’s me falar isso. Sobrou alguém nessa Av. Paulista que nunca tenha comido uma batata dessa rede de fast-food?

Fiquei pensando se o moço tava passando uma cantada em mim. Vai saber, né? Me sentei e, de fato, a batata estava muito quente mesmo. Então tudo bem, era só o cara fazendo o serviço dele. Preciso parar com esse comportamento meu.

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O comportamento que me refiro é o que eu chamo de “ser viciado em seduzir”. O nome é pra ser engraçado mesmo: uma convidada do programa “Casos de Família” foi lá, na televisão aberta, reclamar pro Brasil inteiro que tinha esse problema, que ela era viciada em seduzir. Seja o programa e seus personagens verdadeiros ou não, a foto da moça com a legenda virou um meme hilário e foi assim que descrevi esse comportamento para minha terapeuta.

– É irônico, você não acha?

Perguntei pra ela, sentada do outro lado da sala. O que eu achava irônico era que eu estava lá, semana após semana, tentando resolver problemas de auto estima, especialmente corporal, de imagem. Então me parecia curioso que ao mesmo tempo que eu me achava um lixo, eu prestasse tanta atenção na minha aparência a ponto de sair na rua e ficar com os olhos sempre em movimento, procurando “alguém pra seduzir”.

Ok, essa frase fez parecer algo bem sexual, mas não era necessariamente assim. Eu buscava alguém que pegasse a referência da estampa indie da minha camisa; ou que me olhasse passar com atenção; alguém pra trocar aquele olhar que diz “vi você e, sim, te achei gato”.

– Não acho – respondeu ela como quem dissesse que 2 mais 2 era 4 -, não acho irônico. Como você está preso dentro dessa dinâmica de reprovar tudo que você é e tudo que você faz, você fica sempre olhando pra fora, buscando a aprovação dos outros.

Silêncio na sala. Era óbvio que era isso, fazia sentido mesmo.

Comecei a observar esse comportamento, tendo cada vez mais consciência dele. No começo, eu percebia quando já tinha acontecido e era tarde demais, quando eu já me pegava posando no meio da rua. Mas, a cada dia, comecei a perceber um pouco mais cedo – e comecei a refletir sobre minhas experiências passadas também e o quanto as redes sociais influenciam nesse comportamento. Todo mundo tem aquele amigo que só posta foto da própria cara, por exemplo. Você não tem nada mais pra oferecer pro mundo que sua aparência ou você reprova tanto sua aparência que precisa aliviar essa insegurança recebendo likes dos outros?

Eu sempre tive muitos problemas para aceitar meu corpo no espelho, pra achar roupas que fossem confortáveis e que cobrissem o que eu não gostava em mim, sempre só queria ficar no meu quarto pra evitar ser olhado e pagar mico na rua era meu maior medo. Por outro lado, tive amigos legais e companheiros e aventuras amorosas muito interessantes também. Mas no final, o que me marcava de tudo, era o quanto as pessoas mencionavam meu intelecto.

Parece maluco isso, mas “você é engraçado, você é inteligente, você escreve bem” não me pareciam elogios verdadeiros nunca, sempre pareciam apaziguadores: eu não só não me achava tão inteligente assim, como achava que falavam que eu era inteligente pois não tinham o que mais elogiar em mim. Como se, por eu ser feio, sobrava a inteligência pra ser elogiada, algo que no final das contas é tão subjetivo quanto beleza mas que não é visual, afinal. Quando você se sente mal até quando te elogiam, você entra num ciclo auto-depreciativo realmente sem fim.

Sabe aquela fase da puberdade que você quer passar despercebido e, ao mesmo tempo, quer ser o centro das atenções? É como se essa minha fase tivesse durado 20 anos. Fotos eram poucas e, na época que eu usava aparelho nos dentes, praticamente proibidas – mas eu tinha um Fotolog (quem lembra disso?) cheio de fotos minhas ao mesmo tempo. Eu odiava organizar meus aniversários, não queria fazer, não queria ver ninguém – mas no dia, até passava mal de tanta ansiedade com medo de ninguém aparecer, louco por uma festa muito animada e demonstrações de carinho comigo. Eu não tinha problemas com minha imagem contanto que eu pudesse controlar o que as pessoas viam – tudo bem fotos se tiradas e editadas por mim; tudo bem ser o centro das atenções se for na hora que eu quiser, no lugar que eu escolhi.

E por aí vai.

Terminei meu lanche no McDonald’s e saí do restaurante. Aí vi a janelinha de sobremesas e fui pegar um Sundae de chocolate – pra mim, a melhor calda do Mc. Adivinha quem me atendeu? Sim, o mesmo moço das batatas. Fiz meu pedido, ele me ofereceu “calda extra por mais 1 real” e eu aceitei.

– Ah, não dá pra recusar, né? – me disse ele, novamente super sorridente.

Sorri de volta, peguei o sorvete e fui embora. Enquanto esperava o semáforo de pedestre abrir, me virei e olhei de novo pro atendente. Ele continuava sorridente e continuava olhando pra mim. Sorri de volta e aí fui embora de verdade.

Dinamite caseira

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[…] Eu não consigo levar relacionamentos com a leveza bonita dos filmes. Esse papo de “deixar acontecer”, pra mim, é estranho – no sentido de ir conhecendo a pessoa aos poucos e, com isso, o relacionamento ficar sério. Claro que é assim que tem que ser, mas as pessoas são diferentes e têm tempos diferentes de sentir. Uma hora, mais cedo ou mais tarde, é preciso tomar a decisão de ficar juntos e trabalhar à partir daí. Sem essa decisão, fica tudo para sempre no ar. Tem tudo a ver com meu primeiro amor: ele me descartou para voltar com o ex dele. Hoje eu sei o quanto isso é normal e que, na verdade, eu era a vela da história, eles tinham um passado, um histórico, e eu apareci na mesma velocidade que fui convidado a me retirar. Mas na época me doeu muito e moldou como funcionariam vários dos relacionamentos que vieram à seguir: eu queria, sempre e o tempo todo, deixar tudo muito claro. Sem pensar, queria falar tudo que eu estava pensando. Jogar tudo na mesa, me abrir, fazer definições. No fundo, era medo de perder a pessoa do meu lado se eu deixasse ela muito tempo nesse modo do “deixar acontecer”, medo de ela achar que eu não estava interessado, que resultava em um interesse descomunal que no fim afastava todo mundo. Depois, virei a pessoa que é o contrário disso, a pessoa que eu sempre temia estar diante de, a pessoa fechada e que acha que está no controle por se abrir pouco. Falhou também. […]

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dança dos talheres

semana passada eu tive um sonho em que eu achava alguns talheres de casa dentro do lixo. pensava: gente, o que eles estão fazendo no lixo? não era pra eles estarem aqui. onde eu vou comer?

e comecei a catar os talheres. de forma geral, eles estavam até limpos, era só passar uma água e botar de volta para uso. mas lembro de ficar muito encucado no sonho: por qual motivo eles estavam no lixo?

na terapia, papo vem, papo vem, trata-se de um sonho sobre amizades. há muito eu converso nas sessões sobre amigos queridos e outras pessoas importantes que se afastaram – na verdade, esse fato foi um dos principais motivadores pra eu ter voltado para a terapia, por ter percebido que meus problemas psicológicos eram diminuídos ou ignorados pelas pessoas mais próximas de mim, que preferiam se ocupar com coisas mais interessantes e pessoas mais legais. acontece.

e sobre o afastamento, muito não é culpa só dos outros, mas muito é – mesmo que indiretamente. sempre digo: disponibilidade não cai do céu, disponibilidade a gente cria de acordo com o que a gente julga prioridade. falar que tá com saudades não quer dizer que se está com saudades de verdade. e se a pessoa está sempre indisponível para você e disponível para outros, dá pra perceber que algumas decisões foram tomadas do lado de lá.

mas mais importante que tudo isso é saber que tem uns talheres que você pode tirar do lixo. você não sabe bem o que eles estão fazendo ali, como eles foram parar lá, mas você pode tirá-los de lá. e limpar todos eles. e mais: existem outros talheres no mundo, de todas as cores, qualidades e valores. de vez em quando a gente enjoa dos talheres da nossa casa mesmo, é normal, bate uma sensação de que eles já foram muito usados e que uns novos iam dar um gás a mais na nossa cozinha, sabe? se me jogaram no lixo pra dar espaço pra talheres novos, fazer o quê? que façam bom uso desses novos.

e eram apenas garfos e facas no meu lixo do sonho, não tinham colheres. as colherem estavam no lixo anterior e já tinham sido recolhidas pra sempre ou ainda estavam guardadas limpas e intactas na gaveta? nunca saberei.

e é isso.

Correr sem rumo é esperar em movimento

“Anda mais devagar, por favor” é, provavelmente, a frase que eu mais ouvi a minha vida inteira. Da minha mãe, da minha irmã, dos meus amigos e namorados. Todos me pediam pra diminuir um pouco o ritmo quando andávamos na rua juntos.

“Parece que você tá sempre querendo estar em outro lugar”, diz minha analista. “Você quer sempre estar em algum lugar que não seja aqui”.

E é mais que isso: qualquer lugar que não seja aqui e que não seja agora. Um jeito muito claro que minha ansiedade me afeta é nessa sensação de sempre pousar minha felicidade em um futuro inatingível.

Minha vida será ótima quando uma coisa acontecer lá no futuro. Me baseando em tudo que não tenho agora, digo que estarei completo apenas lá na frente. Serei feliz quando estiver em um relacionamento melhor, em um emprego mais divertido, com um salário maior, usando umas roupas melhores, em um apartamento mais bem decorado, em outro bairro, em outro país, com um cachorro. E por aí vai.

O problema é que essa minha pressa pra estar em outro lugar não está me levando a lugar algum. A única coisa que consigo com esse pensamento é desvalorizar tudo que tenho.

É aquela metáfora do cavalo com uma cenoura pendurada na testa. A fome o move pra frente, mas ele nunca alcançará a cenoura, não importa quão faminto ele esteja. E na pressa de cavalgar em direção a ela, perde de vista as outras cenouras pelo caminho.

São anos e anos pousando minha felicidade ali na frente. E daí vem essa minha pressa. Eu não sei bem o que me aguarda ali na frente, mas deve ser melhor do que tudo isso que estou vendo aqui. Parece que, mesmo que intelectualmente eu não acredite de verdade nisso, até meu corpo acredita e me leva pra frente. Aliás, para frente não, e sim para longe. Longe de onde eu estava, com certeza. Mas não necessariamente para mais perto do que eu quero.

E o que eu quero? Se eu não souber o que eu quero, não adianta ir com pressa – pois, na verdade, eu não estou indo para lugar algum. Se é pra ir, é melhor ir com calma – mas de encontro a um alvo.

Um professor uma vez me disse pra fazer uma lista de tudo que eu queria da vida – e essa lista estava na ponta da língua, enchi o papel em segundos. Depois, ele pediu pra eu escrever – bem na frente de cada coisa que eu queria – que ações eu estava fazendo no meu dia a dia para ter aquela tal coisa que eu disse que queria tanto. Nem preciso dizer que essa segunda lista era bem menor.

Infelizmente, não dá mais pra ignorar essa verdade que ignorei minha adolescência inteira: correr sem rumo é esperar em movimento.

O que você quer da vida? O que você está fazendo pra chegar lá?

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Mert Alas/LOVE

Autocontrole é ter empatia por você mesmo

Dias desses um conhecido anunciou que estava mudando de cidade e quando questionei o motivo ele disse que gastava dinheiro demais em São Paulo, pois tinha muita festa todo final de semana. “Ué, você não pode continuar aqui e simplesmente não ir em tanta festa assim?”, perguntei, e ele respondeu de forma evasiva: “Essa é a sua opinião”. Não entendi nada. Não era minha opinião, eram as escolhes dele, escolhas que ele têm controle de fazer.

***

Com certeza você já viu por aí o que é conhecido como o Teste do Marshmallow: crianças de várias idades são colocadas sozinhas em um cômodo com um doce e são instruídas a não comer o tal. Se resistirem por um tempo determinado, poderão comer muitos marshmallows mais tarde. Esse teste é feito desde os anos 1960 e é um exercício de autocontrole interessante de assistir: algumas crianças resistem à tentação, focando na recompensa maior que receberão no futuro. Outras crianças não aguentam e preferem comer o doce imediatamente, mesmo que seja apenas um docinho só.

Mas esse exercício tão bobinho (e até engraçado de assistir) guarda uma metáfora poderosa sobre nosso comportamento como humanos: o tempo inteiro precisamos escolher entre o agora e o futuro – independente da quantidade de doce, independente da nossa idade, independente de estarmos sendo observados ou não. O clichê existencial é que “o futuro a Deus pertence” e “o que importa é o hoje, não o ontem nem o amanhã”, mas não é bem assim. Especialmente se você pensar que autocontrole é um jeito de ter empatia por você mesmo.

E veja só: recentemente, a Universidade de Zurique divulgou um estudo muito interessante que mostra que a área do cérebro que cuida do autocontrole é a mesma que cuida de empatia e altruísmo.

Faz sentido, não é? Empatia é a sua capacidade de superar a sua própria perspectiva de vida ou sobre um assunto, apreciar o ponto de vista do outro, se colocar no lugar dele. O autocontrole é basicamente a mesma coisa, mas é a habilidade de se colocar no lugar que você mesmo vai ocupar no futuro; ao invés de ser um cuidado com uma pessoa diferente, é com você mesmo.

Autocontrole pode funcionar como um altruísmo temporal consigo mesmo na maioria das vezes. Pensar a longo prazo é racionalizar (alguma) restrição em nome de um objetivo maior. É aguentar mais um pouquinho um emprego chato para só pedir demissão no caso de uma oportunidade bem melhor. É não comer sobremesa todo dia para conseguir perder os quilinhos que você quer se livrar. É não comprar aquele tênis para pode guardar dinheiro para uma viagem. É dividir uma tarefa ao longo da semana ao invés de ficar com a semana livre e ter que fazer com pressa. É aguentar o longo e chato processo burocrático em troca de alugar o apartamento que você quer morar. E por aí vai.

Um dia, reclamando de uma ressaca, um amigo disse: “beber é pegar emprestada a felicidade do dia seguinte”. Acho esse um exemplo que cabe muito bem aqui. Impulsividade e egoísmo são duas metades da mesma moeda, enquanto seus opostos, restrição e empatia, são metades de uma moeda diferente. Para usar o exemplo do meu amigo, autocontrole pode ser o simples fato de não exagerar na bebida hoje em nome de algum compromisso que você vai ter no dia seguinte e você não quer perder.

O que você está fazendo de legal hoje é tão legal a ponto de sacrificar as coisas legais que você iria (ou gostaria de) fazer amanhã? Quando você perder os compromissos de amanhã, vai achar que valeu à pena ou vai se arrepender? É meio que assim que eu tenho tentado pensar ultimamente. Fez muita diferença no meu dia a dia enxergar que ser impulsivo pode ser um jeito de ser egoísta comigo mesmo – e não o contrário, como eu achava.

Essas características são as sementes dos nossos sucessos e fracassos quando o assunto é sair das nossas próprias bolhas egocêntricas, à caminho de compreender as vidas dos outros – mesmo quando esses outros somos nós mesmos, no futuro. Muitas vezes é preciso parar e respirar antes de continuar uma caminhada e apreciar a vista é tão importante quanto chegar no topo. Sim, basear sua vida inteira em planos para o futuro é uma perda de tempo, mas viver apenas no presente também pode ser muito limitador.

Em resumo, viver é tentar equilibrar isso tudo de forma que a gente caminhe de acordo com nossos objetivos verdadeiros, com nossas maiores vontades na vida. Quais são as suas? Você quer um docinho hoje ou um saco de doces amanhã?

(Leia também: Onde você quer acordar?)

marshmellow

(baseado no texto do The Atlantic)

Eu queria ter sido um gay de 15 anos

Eu morro de amores quando estou na rua e passa por mim um casal gay com 15 anos de idade, de mãos dadas. Com 15 anos eu estava tão confuso, reprimido e deprimido, que eu nem lembro direito da minha vida naquela época. Então eu acho lindo quando eu vejo esses casais: eles já estão esclarecidos o suficiente pra ter uma adolescência mais normal.

Nessa idade, quando você é um gay que não se descobriu 100% ainda, parece que sua vida acontece em um universo paralelo ao das demais pessoas, da sua idade, ao seu redor. Todo mundo estava sorridente, tendo namorinhos, indo em festinhas, fazendo as coisas normais de adolescentes. E eu lá, sozinho em casa, chorando ouvindo música e lendo Flaubert. Pensando que eu era uma aberração, o único no mundo assim, tendo muita dificuldade em controlar minha ansiedade e projetar uma imagem que eu acreditava ser mais correta.

Ter 15 anos e já ter uma consciência de si o suficiente para se entender como gay e ter um namoradinho é muito lindo. Economiza muita dor e sofrimento para aquele jovem. Aprendi muito levando socos da vida, mas teria aprendido mais coisas (e coisas mais legais) se meu ponto de partida fosse outro, se eu estivesse em um ambiente que me aceitasse melhor e mais cedo – ou se, pelo menos, tivesse sido impactado por mais imagens positivas da comunidade gay – sempre deixada de fora dos produtos culturais que consumimos.

Quando a gente fala que representatividade é importante, é por causa disso. Não é para doutrinar ninguém, não é para a marca ou o programa de televisão pagaram de moderninhos, não é para ensinar as crianças a serem gays – isso não se ensina (tentaram me ensinar a ser hetero e desde sempre soube que não era pra mim). Representatividade é para que esses jovens fiquem um pouquinho mais tranquilos com essa coisa dentro deles, que causa tanta estranheza quando descoberta e que, por eles acharem que devem esconder, traz também tanta dor. É para ajudar a naturalizar algo que já existe nessa criança: ela mesma.

Acredite em mim: o preconceito e o ódio ao redor nos leva de cara a um caminho de auto-negação, pois queremos ser aquilo que os outros esperam de nós, e muita gente morre nesse processo, por dentro e por fora. Morrem pois matam sua essência, morrem pois se escondem atrás de hobbies e profissões e roupas e comportamentos que na verdade não gostam, morrem pois se matam. E morrem pois são assassinados também.

Quando você tem um segredo que pode te custar sua vida, não existe infância, não existe adolescência, não existe a vida direito. Eu me escondi na minha coleção de discos, mas tem gente que se esconde nas drogas, na criminalidade, na prostituição, e até na homofobia. A lista é infinita.

A próxima vez que você passar por um casal gay de 15 anos de mãos dadas na rua, lembre-se disso tudo que falei aqui. Não é por ser modinha, não é influência da novela e não é, necessariamente, um jovem sexualmente precoce. São apenas pessoas aprendendo, com erros e acertos, sobre o amor, sobre viver em sociedade, sobre ser humano, sobre ser quem elas são de verdade.

E, no meio do caminho, ainda mostrando pra esse mundo cheio de preconceito e ódio que mesmo que eles ainda não tenham se encontrado por completo, eles já sabem o lugar deles: onde eles quiserem estar.

🙂

Eu achei seu namorado meio feio

Tudo que estou falando aqui também está no vídeo, mas eu fui falando de improviso e ficou confuso, então estou publicando aqui também.

Uns dois meses atrás adicionei no Facebook um menino, achei ele interessante e bonito (quem nunca fez isso, né?), mas não chamei ele pra sair de imediato. Por coincidência, nos vimos num evento na semana seguinte e lá eu dei “oi” pessoalmente. Foi uma conversinha rápida, mas achei ele ainda mais interessante e bonito, então chamei ele pra sair logo depois. Ah, mas ele tinha namorado. Puxa, eu não sabia e pedi desculpas. Ele não estava acompanhado no evento (pelo menos não na hora que o vi) e o perfil do Facebook não tinha status de relacionamento indicado. Foi um erro honesto e inocente, ele me desculpou com tranquilidade, e vida que segue.

No dia seguinte, ele compartilhou um meme que dizia “por incrível que pareça, eu sou monogâmico” (ou algo parecido com isso) e parecia muito uma indireta para mim. Na dúvida, todos os meus amigos falaram que devia ser, e pra eu deletar ele da minha rede. Pensei: “bom, eu adicionei pra chamar ele pra sair e nós não vamos sair nunca, talvez seja melhor eu deletar mesmo”.

Só que na semana passada nos vimos numa festa. Ele estava com vários amigos e tínhamos até alguns amigos em comum que eu não sabia. Levei um leve susto quando o avistei, mas nos cumprimentamos com grandes sorrisos e beijinho na bochecha, a vibe da festa estava ótima, não teve climão nenhum, todo mundo dançou junto um pouco até. Mais tarde, obviamente um pouco bêbado, eu comentei com um amigo que achava o namorado desse tal menino meio feio, que eles não combinavam, ou alguma coisa desse tipo. No dia seguinte, eu literalmente acordei com uma mensagem no chat do meu Facebook dizendo assim:

– Querido, da próxima vez que for comentar sobre o namorado dos outros, se olhe no espelho primeiro.

Era o menino que eu tinha deletado. E não interessa como ele ficou sabendo que eu falei isso, eu me senti um lixo. Sério, um lixo! Fiquei com tanta vergonha que eu não cabia em mim. Pedi mil desculpas, culpei a bebida, pedi desculpas de novo, falei que pediria perdão pessoalmente no futuro, pedi desculpas de novo, e o menino respondeu apenas que esperava que isso não se repetisse.

Eu passei a semana inteira pensando nisso. Quem eu penso que eu sou pra julgar o relacionamento alheio? E feio de acordo com qual referencial? Se eles se gostam e se acham bonitos, é isso que importa. Eu não tenho nada a ver com isso, eu não tenho que ter opinião alguma, muito menos verbalizá-la. Como eu pude ser tão idiota? A minha opinião não é necessária ou relevante.

Eu passei a semana inteira pensando nisso. Somos treinados pra julgar e é complicado separar um julgamento de uma opinião. Eu ter achado o cara feio não quer dizer nada, nem mesmo que ele é feio. Mas o estrago foi feito. Muitas vezes (muitas, mesmo) eu sei que eu fui esse cara, o cara do casal que as pessoas de fora olham e pensam: “nossa, nada a ver esses dois, esse cara é meio feio pro Fulano”. E eu sei como isso pode doer (e no meu caso, como isso me deixava ainda mais inseguro sobre o relacionamento). Com que direito eu passo isso pra frente e repito com os outros exatamente algo que já me fez tão mal? Eu devia saber melhor.

Eu passei a semana inteira pensando nisso, em como a gente é criado pra ser idiota uns com os outros, pra julgar os outros, as escolhas do outros. Em como a gente não pode viver em uma novela mexicana, com inimigas espalhadas pela cidade. Quem está contra a gente, está super unido – e a gente tem que se unir também: a gente não é concorrente um do outro, o mundo é mais que homem, cada um cuida da própria vida, cada um sabe o que lhe faz bem e ninguém de fora tem nadinha a ver com isso.

Mas a gente só lembra dessas coisas quando tem alguém querendo cuidar da nossa vida, né? Quando somos nós os falantes, os comentaristas, esquecemos dessa máxima e passamos pra frente esse comportamento que tanto odiamos quando fazem com a gente. E enquanto não somos pegos no flagra, não nos importamos. Não julgar é uma tarefa muito complicada, mas guardar nossos julgamentos é um pouco mais fácil. É um esforço consciente, mas é possível.

Eu passei a semana inteira pensando nisso e queria que você pensasse um pouco sobre isso também, por isso escrevi esse post e fiz esse vídeo.

hands

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Coração em modo soneca

Ele tinha um monte de coisas para fazer de manhã, colocou o coração pra despertar bem cedo e poder começar logo a fazer todas aquelas tarefas divertidas que ele precisou adiar durante toda a semana – sabe como é, o dia a dia não deixa.

Mas quando o coração despertou, ele ignorou. Botou no modo soneca e continuou dormindo. Tocou de novo, ele adiou de novo. E de novo. E de novo.

Quando finalmente acordou, era tarde demais pra fazer tudo que tinha planejado.

Sim. Dava tempo de se levantar, e até de aproveitar o resto do dia, mas aquela manhã tinha passado e ele não tinha visto. Agora, teria que esperar, no mínimo, a manhã do dia seguinte. E torcer pra que ela esteja tão ensolarada quanto a de hoje estava.

(Talvez demore pra chegar de novo uma manhã que junte tudo isso de novo: o sol e a vontade dele de acordar cedo. Mas uma outra simples manhã ensolarada, com ele acordando cedo, com certeza virá. Será uma outra manhã, não a manhã de hoje. A manhã de hoje ficou pra trás, nunca mais haverá uma manhã de hoje)