Não sou nem curto afeminados

Fiquei alguns dias organizando as ideias desse texto – era algo que queria muito escrever sobre. Com o tal beijo gay no capítulo final da novela “Amor à Vida”, achei apropriado publicar e adicionar o assunto a ele. Imagino que as palavras abaixo estejam cheias de erros técnicos – não sou estudioso de psicologia e sexualidade -, mas acho que meus achismos valem um pouco, então aí estão eles :}

O que é ser gay?
Antes de tudo, qual é o núcleo da homossexualidade? Se sentir atraído por um indivíduo do mesmo gênero que o seu. Todo o resto é comentário.

“Se o cara se veste de mulher mas tem tesão em mulheres, é hétero? Se ele transa com mulheres mas pensa em homens durante o sexo, é gay?”. Pra mim, tudo isso ainda é comentário, cada caso tem suas particularidades. Mas o que importa nesse ponto é o conceito frio de ser gay, que é esse: se sentir atraído pelo mesmo sexo. Fim.

Inclusive deu praticamente isso na pequena enquete que fiz no meu Facebook.

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Gosto muito da resposta sobre identidade social: um médico é um médico, um médico que é gay é um médico-gay. O “um” sempre acaba representando o grupo todo. Que perigo.

“Ser gay não é só se sentir atraído pelo mesmo sexo”, me dizem sempre, “é mais que isso, é um posicionamento, uma identidade, um estilo de vida”. Ok, quais? Nessa hora os que não fogem da pergunta respondem sempre coisas diferentes…

O que é a cultura gay?
O conceito da Cultura LGBT é fácil: é a cultura comum e partilhada por lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. Ok, mas e aí? O que há de comum entre todos os gays além de que eles são gays?

Bom, se eu te perguntar qual é a cultura de Minas Gerais, o meu estado, é capaz de alguém responder na ponta da língua: pão de queijo, Aleijadinho, Carlos Drummond de Andrade. Isso significa que todo mineiro gosta e conhece todas essas coisas? Claro que não. É um estado muito grande pra generalizar todos dentro desses três itens – há muito mais na cultura de Minas.

É a mesma coisa. Ser gay é “só uma das” característica da pessoa, ela não necessariamente compartilha interesses e características com todo o grupo além dessa. Já até escrevi nesse blog sobre gays que não apoiam o casamento gay! É difícil rotular a cultura gay: qualquer item que você usar (um comportamento, uma roupa, um representante) vai ter alguém pra gritar: “ei, eu discordo!”.

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“Aqui é Parada Gay, não a Parada Lady Gaga. Ela não é uma representante para nós. Ela não é lésbica, ela não é gay. Só gostar da gente não te faz parte do nosso grupo. Você é uma mulher hétero, você não sabe nada sobre bullying. Você não sabe o que a gente passa.” Hum, será?

Esse gigantesco grupo que chamam de “gays” é cheio de sub-grupos. Barbies, ursos, emos, poc-pocs, indies, modernos, dykes, tuchas, sapatilhas, mini-lésbicas e caminhoneiras são apenas alguns deles. Por mais plural que isso pareça, cada grupo pode ser muito fechado, o que causa um certo estranhamento.

Não é difícil ver gays falando mal de lésbicas ou de outros gays. Produtos midiáticos (novelas, séries, filmes, livros) acabam sendo propagandas que vendem estilos de vida e não é impossível conhecer negros homofóbicos, lésbicas racistas, gays machistas. Triste, mas é verdade.

E aí que entra todo o straight acting
Dentro do meio gay há um grupo de pessoas que gosta de se rotular “st8 acting”. São gays que se dizem “não parecer gays”. Em teoria, agem como héteros. Já conversei com alguns e eles geralmente citam coisas como “não gosto de boate, não gosto de Madonna, não falo fino, não desmunheco, malho, assisto futebol, bebo cerveja”. Coisas assim. Eles acreditam, mais do que ninguém, no pacotinho que esses produtos midiáticos rotularam como “gay”.

Quando mudei pra São Paulo e falava que era mineiro, muitos exclamavam: “Nossa, mas você não parece mineiro!”. E parecia que estavam no aguardo de um agradecimento meu. É um elogio falar a alguém que ele não parece ser algo que ele é? Como é um mineiro, gente, me digam?

Agora: como é um gay, gente, me diz?

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Quando alguém usa a palavra “gay” em quê você pensa? Resposta certa: não há resposta certa

O que há por trás dessa galerinha que se acha superior por não parecer gay é essa imagem aí em cima. O que chega da comunidade gay para fora dela não representa todos. NUNCA REPRESENTARÁ. E existe um medo até compreensível de que os outros vão achar que sou algo que não sou. Eles realmente acham que “todo gay curte boate”, por exemplo. “Logo, se eu não curto, não sou tão gay assim”. Ahm?!

O que é empacotado como “gay” e vendido para não-gays não representará todo o grupo, mesmo que seja numa série como “Looking” ou numa novela com beijo gay no final. Em uma carta aberta aos humoristas brasileiros, Alex Castro escreveu:

Quando uma pessoa gay é agredida com uma lâmpada na Av. Paulista, a equipe de criação do Zorra Total não pode levantar as mãos e se declarar inocentes. E nem quem assiste e ri. (fonte)

Eles está coberto de razão nesse ponto. E esses gays que rejeitam rótulos são tão vítimas desse tipo de coisa quanto todos os outros – têm medo de ter sua imagem associada aos pacotinhos e, temendo a ignorância alheia, agem como ignorantes.

Mas calma, talvez essas pessoas que se acham “menos gays” não achem isso por causa da mídia, mas se baseiam é nos gays ao seu redor mesmo, nos homossexuais que eles conhecem. Hum…

O que fazer se eu sou um gay “não-afeminado” então?
Bom, meu amigo, a primeira coisa é parar de se achar superior. Como aprendemos no primeiro item desse texto, se gosta de gente do mesmo sexo é gay e fim. Agir como hétero não te faz menos gay por definição. Talvez deixe sua vida mais fluida, menos caótica (pois atrai menos olhares julgadores e, assim, corre menos risco de levar surra de lâmpada na cara ou de canos enfiados na sua perna ou de Bíblia), mas não te torna menos gay.

A segunda coisa que você precisa fazer é SAIR DO ARMÁRIO PRA TODO MUNDO (e aqui tem umas dicas). Se você não gosta da imagem que as pessoas têm dos gays é responsabilidade sua mostrar que existem vários tipos de gays no mundo. Não tem nada que exija mais coragem de um homem do que ele viver sua verdade todos os dias o dia todo. Mas não esqueça que quando alguém falar “nossa, você nem parece gay!” isso não é um elogio.

Ser gay e querer ser menos gay é, com certeza, um problema. Mas não tem problema apenas discordar de algo que a então chamada cultura gay “impõe”. Eu não baixei o novo episódio de “Glee”, mas durmo tranquilo. Ninguém vai caçar minha carteirinha de gay por isso.

E no caso das vítimas desse preconceito bobo, os gays afeminados, cabem a eles também mostrar que são mais do que apenas isso. Cada um vai descobrir seu jeito de mostrar como.

Beijo gay pode sim, mas tem um porém
A importância de um beijo gay na novela é qual? Já teve beijo gay em tantos filmes, programas e séries…

Mas meus avós não baixam série, não têm TV a cabo, não vão ao cinema. (…) Se ele [meu avô] achou um absurdo, uma pouca vergonha, ou normal, ou bonito, ou diferente, a verdade é que ele viu para poder achar. Ele pôde ver. Contra a vontade ou não. Mas viu algo que faz parte da sociedade, mas que não fazia parte da casa dele. Um beijo gay na sala de estar da casa dos meus avós? Impossível. Até ontem. Se a Globo mostrou isso pros meus avós foi porque já não dava mais para esconder. (fonte)

É isso.

Claro que o ideal é um beijo entre gays ser chamado apenas de beijo (ninguém fala que no filme tem um “beijo negro”, né?), mas esse capítulo final de “Amor à Vida” foi, definitivamente, um começo. A estrada tá aí pra ser percorrida.

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O tal beijo gay: não vale reclamar que foi fraco. Mas vale perguntar: quando chamaremos apenas de beijo?

O problema é que foi o primeiro e, pra amenizar, foi preciso reforçar umas ideias polêmicas. Afinal, a vida é linda quando você é um gay forte, branco, bonito e rico, mas essa não é a realidade de muitos. Verdade, mas lembra o que falei antes? O que chega da comunidade gay para fora dela não representará nunca todos (especialmente se quem está escrevendo, atuando e transmitindo não é, “em essência”, gay). Você pode ter um programa de sucesso como “Cosby”, “Everybody Hates Chris” ou “My Wife and Kids” no horário nobre por várias temporadas, mas não pode dizer que esses programas “representam toda a comunidade negra”. É a mesma coisa aqui.

Não se chega a lugar nenhum respeitando de cabeça baixa uma cultura que te oprime. Mas, por mais heteronormativo que tenha sido o fim dos personagens da novela, temos que começar de algum lugar, certo?

Não somos uma minoria. Somos?
Sabe o que é mais legal do que fazer todo mundo ver um gay se beijar? É fazer todo mundo parar com essa palhaçada de tratar gays como marginais.

Quando dizem que negros ou mulheres ou gays são minoria, não querem dizer em quantidade no mundo. Mas sim em representatividade política. Mudanças profundas na sociedade são lentas, podem começar na novelinha, mas podem ser bem aceleradas se tivermos, no poder, políticos que lutem pelas causas gays. Pense nisso nas próximas eleições e fique de olho nos vira-folha que prometem uma coisa para os eleitores gays e exatamente o contrário para os eleitores evangélicos, por exemplo.

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Jean Wyllys: eleito em 2010 para mandato de deputado federal; Harvey Milk: primeiro homem abertamente gay a ser eleito a um cargo público na Califórnia, como supervisor da cidade de São Francisco; Amanda Simpson: uma das primeiras transexuais a integrar o governo federal dos EUA, no Departamento de Comércio.

Resposta genética?
Inclusive pois acredita-se muito que a formação de sua identidade sexual tem a ver com a cultura ao seu redor, ao tipo de coisa que você é exposto, ao tratamento recebido pelos seus pais. Mas, nos últimos anos, pesquisadores começaram a apontar que a formação da sexualidade acontece antes do nascimento – em parte pelos genes, mas também por fatores que atuam no desenvolvimento do feto. Ainda falta muito a ser desvendado, mas as evidências estão causando uma revolução no pensamento científico. E, se comprovadas, poderão subverter simplesmente todas as noções básicas que a sociedade atual construiu ao redor dos gays. (fonte)

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“Meu nome é Brock, tenho 7 anos de idade, e me considero do tipo diva”

Homofóbicos e religiosos homofóbicos gostam muito de argumentar que o mundo nunca teve tanto gay antes, pois agora estamos tratando “essa doença como algo normal”. Mas é justamente o contrário. É impossível ter dados técnicos, mas eu apostaria que o número de gays hoje e em 1489 é quase o mesmo, mas agora as pessoas se sentem confortáveis para serem elas mesmas.

Quem são os homofóbicos? Alguns estudos indicam que são pessoas conservadoras, rígidas, favoráveis à manutenção dos papéis sexuais tradicionais. (…) A homofobia reforça a frágil heterossexualidade de muitos homens. Ela é, então, um mecanismo de defesa psíquica, uma estratégia para evitar o reconhecimento de uma parte inaceitável de si.

Dirigir a própria agressividade contra os homossexuais é um modo de exteriorizar o conflito e torná-lo suportável. E pode ter também uma função social: um heterossexual exprime seus preconceitos contra os gays para ganhar a aprovação dos outros e aumentar a confiança em si. (Regina Navarro)

E eu com isso?
Quando eu comecei a perceber que gostava de meninos, foi muito dolorido. Não sabia o que era gay ou sexo, me achava uma aberração, achava que era o único assim no mundo. Ter gays em filmes e novelas, mesmo que agindo “como héteros”, já ajuda a naturalizar isso. Essa crescente inclusão de gays nos pacotinhos midiáticos pode (e acredito que vai) ajudar a economizar dor, desgaste familiar e dinheiro em terapia.

Não há nada de errado em ser gay, então não seja um babaca.

Pra quem quiser continuar a reflexão, outros três textos meus:
Gays que gostam de futebol
Pensando com Laerte
Daniela Mercury não me representa

Beijos (na boca ou no ombro, mas beijos)

O amante

Além do acasalamento, há este outro abraço, que é um enlaçamento imóvel: estamos encantados, enfeitiçados: estamos no sono, sem dormir; estamos na volúpia infantil do adormecer: é o momento das histórias contadas, o momento da voz, que vem me hipnotizar, me siderar, é o retorno à mãe.

Contudo, durante esse abraço infantil, o genital acaba irremediavelmente por surgir; ele corta a sensualidade difusa do abraço incestuoso; a lógica do desejo põe-se em marcha, o querer-possuir retorna, o adulto se justapõe à criança. Sou então dois sujeitos ao mesmo tempo: quero a maternidade e a genitalidade.

O amante poderia ser assim definido: uma criança de pau duro.

 

– Barthes

A maldita sinceridade

Segundo Rousseau, a sinceridade é como uma espécie de “tormento cultural”. Imagine o mundo onde não há mentira, que chatice. Empresas falindo porque a foto da embalagem é exatamente como o produto é lá dentro; milhões de mulheres com raiva dos maridos que não gostaram do novo corte de cabelo; currículos mais do que enxutos. Mentiras são lubrificantes sociais.

Ou não? Quero dizer, na comédia “A Invenção da Mentira” – que não é um filme muito engraçado, mas que recomendo pelos questionamentos que levanta -, vemos um mundo onde ela ainda não existe e as pessoas estão tão acostumadas em ouvir a verdade que não se ofendem, e aceitam tudo naturalmente. O cara pergunta se a moça quer jantar com ele de novo e, ao invés de falar que está sem tempo ou algo assim, ela responde que ele é chato, feio e que mastiga a comida de uma maneira nojenta. Aceitar verdades devia ser normal, mas não é. A sinceridade é uma preocupação que oscila entre aceitação, negação e caricaturização.

Das autobiografias aos reality shows, forja-se uma verdade para satisfazer certas curiosidades, hoje segmentadas – um imagina como os outros fazem sexo, enquanto outro imagina como as pessoas lavam louça, vai saber. É que todos sabem, mesmo que instintivamente, que a personalidade cultural das pessoas não reflete exatamente quem ela é em essência. A pessoa que veste tal roupa e vai trabalhar em tal coisa é um personagem, criado por ela com base em um aspecto da sua “personalidade total”. É sua persona – uma palavra grega que diz respeito à máscara por onde a voz passa. Todo mundo está afim de ver a intimidade alheia, o outro lado dos outros, mesmo que não comungue de forma plena das suas próprias ações ocultas – ou “não públicas”. Mas ser sincero é expôr sua intimidade?

Voltando o assunto: sinceridade não é só isso. Que você não é você, em sua totalidade, o dia inteiro, você sabe. Estava querendo falar é de outro tipo de sinceridade.

O Brasil, especialmente, é um país onde esses conceitos todos se confundem. Educação, falsidade. A linha é tênue e você pode ter bastante certeza da sua posição sem conseguir que enxerguem isso. Por aqui, as regras vêm da cordialidade, herdada do tempo de colônia. É a relação de fazer tudo o que o país opressor quer enquanto planeja-se a independência por baixo dos panos. É a relação do tapinha nas costas enquanto amola-se a faca que virá em seguida.

Por outro lado, ser sincero e falar o que se pensa o tempo todo para todo mundo já é uma perversão, não uma qualidade. Existem os momentos onde omissões se fazem necessárias e mesmo mentiras – que, quando não ferem à justiça, são saudáveis.

Perceba que, quando te perguntam algo, volta e meio você diz antes da resposta: “Posso ser sincero?”. Ora, porque não poderia? Ah, por muitos motivos. Sempre começamos uma crítica colocando a palavra “sinceramente” na frase. É para amenizar e para nos excluir da culpa – afinal, foi você que pediu minha opinião! Para a filosofia e para muitos, sinceridade é sinônimo de confissão. E – se quem se confessa dá testemunho, conta algo porque viveu e presenciou um fato que pode narrar – confissões podem ser usadas como arma contra aquele que se confessa. Igual funciona quando compatilhamos com alguém um segredo.

Como não sabemos tudo sobre nós mesmos, jamais passaremos essa informação adiante. Mas podemos compartilhar impressões e sentimentos e, então, um pode se sentir como o outro se sente – e esse é o significado da palavra compaixão, intimamente ligada aos relacionamentos amorosos, paternos e de amizade. É a concepção ética de cada um que entra em jogo no assunto. Ter acesso a uma informação, a uma confissão, e não usá-la contra a pessoa tem a ver com isso, certo?

Para refletir.

Para ouvir depois de ler: All I Really Want – Alanis Morissette

Ewige wiederkunft

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!”

Esse é um trecho de “A Gaia Ciência”, último trabalho da fase positiva de Nietzsche, que resume um pouco o conceito de “eterno retorno”. A ideia é a que bem e mal, angústia e prazer, dia e noite, são eventos e sensações que se alternam inevitavelmente. Tanto na história pessoal quanto na mundial, tudo é cíclico. Pense aí na sua vida se não é verdade: amores, decepções, depressões, novos amores. Crises, crescimentos, guerras, epidemias.

A questão ali foi posta por um demônio e dá arrepios só de pensar: conseguiria você viver, de novo, toda a sua vida? Isso quer dizer mesmos erros, acertos, prazeres, e essas coisas poéticas todas. Mas pense no lado mais material. São as mesmas doenças, curas, empregos, pais, moradias, chefes, crises, notas na escola, tapas na cara.

Eis porque a proposta é de um demônio. Embora pareça interessante em princípio, a proposta é absolutamente agoniante. Não é um presente divino e sim uma maldição. Você já pensou no passado e suspirou “Ah, se naquela época eu soubesse o que eu sei hoje”? Viver de novo a mesma vida é viver sempre com esse suspiro preso em você, vendo as coisas acontecerem iguais e imaginando como você poderia ter feito diferente.

Por outro lado, a reflexão é boa. Para poder viver a mesma vida, devemos amá-la muito, devemos tê-la vivida de forma muito lúcida e prazerosa e termos alcançado tudo que queríamos. Devemos? A questão é essa. Devemos ter amor ao nosso destino irremediável ou construí-lo?

Apenas seríamos capazes de amar a vida que temos a ponto de querer vivê-la novamente se ela for muito boa. E isso não está completamente nas nossas mãos. Ou está? Pois apesar das inúmeras histórias que religiões e cultos têm inventado, não temos garantia nenhuma que há mais do que essa vida besta nossa, essa que começou no ventre da sua mãe e que terminará numa cama de hospital – ou numa faixa de pedestre. Então é melhor tentar deixar cada momento merecedor de ser vivido de novo, certo?

Para refletir.

Pensando com Laerte

No filme “The Cement Garden”, de 1993, a personagem de Charlotte Gainsbourg é flagrada vestindo um menininho com roupas femininas. Ao ser questionada pelo irmão mais velho dele, ela diz: “Garotas podem usar jeans, usar camisetas e botas, pois é aceito ser um menino. Mas para uma menino, ser uma menina é degradante. Pois você acha que ser menina é degradante. Mas, secretamente, você adoraria saber, não adoraria? Como é que se sente uma garota?”

Tem bem pouco tempo que Laerte, um dos maiores e melhores cartunistas do Brasil, resolveu fazer algo muito corajoso: revelar para todo mundo que curtia uma onda crossdresser – que é quando uma pessoa começa a usar algumas peças de roupa ou certos acessórios que são, geralmente, atribuídos ao sexo oposto. A declaração foi dada à revista Bravo!, em sua versão impressa e também em uma pequena entrevista em vídeo, aqui.

“Na verdade, a minha convicção é que todas as pessoas gostariam de experimentar muito mais do que aquilo que os códigos sociais permitem, recomendam e limitam. Em se tratando de roupas, acho que as pessoas gostariam de frequentar outros parâmetros e outras áreas também. A vontade de vestir roupas femininas é muito mais frequente do que se imagina. As pessoas sofrem muito por não fazer isso, por achar que é uma vergonha ou algum tipo de diminuição.”, diz ele de forma natural e lúcida. “Vestir uma roupa feminina é constestar um parâmetro de gênero que vigora na sociedade. No limite, é uma coisa política. No fundo, é uma contestação de proposta de mudança. Mas é um prazer meu também”.

Fico feliz em ver gente que enxerga como uma babaquice esses mitos. Dividir a humanidade em gênero é uma coisa que nasceu com as religiões, com a ideia de que a divisão deveria vir das metades necessárias para conceber uma nova vida e com as antigas crenças da vida em matrimônio.

Voltando ao Laerte: “Eu não estou imitando uma mulher, não quero passar por mulher. Eu estou confabulando com um modo de ser que vem sido atribuído às mulheres. Assim como as mulheres – enquanto gênero – frequentam hoje modos, vestimentas e comportamentos que eram exclusivamente masculinos, acho que os homens deviam fazer essa passagem também”. Acho que ele tem razão.

Hoje, uma mulher tem a liberdade de usar calça, sapatos sem salto, não precisa de espartilho, pode falar alto, grosso e beber cerveja. Enquanto isso, nenhum homem pode usar blusa rosa, beber um drink de frutas, comer arroz integral ou ler poesias. A gente – eu, você, nossos pais, nossos tataravôs – chegou aqui há pouco tempo e se engana achando que o mundo sempre foi assim. As coisas foram evoluindo de uma maneira que, por sua lentidão, parecem naturais, mas não são. Em outras culturas, em outras épocas, matar um animal para comer era pecado; era impossível mudar de classe social; bebês usarem roupas amarelas atraía dinheiro; homens só faziam sexo com mulheres para procriarem, pois o prazer mesmo vinha da relação com outros homens.

As gerações mais recentes são daquelas que obrigam o menino a enfrentar precocemente situações para as quais ele talvez não esteja preparado, mas tem de ir em frente porque é homem. Não pode ter medo, não pode chorar, não pode dançar, não pode gostar de arte. O resultado é um bando de gente despreparada para lidar com o desconforto, com o sagrado, com o feminino – e um monte de mulheres insatisfeitas com seus próprios homens, claro.

A chamada “cultura ao redor” não pode ser mais forte do que nossa vontade de mudar e nossa inclinação a pensar diferente, a pensar sobre nossos hábitos e sobre os nossos próprios pensamentos. Não há quem resista a tanta pressão e angústia, presentes dos dois lados da moeda. Passou da hora de todo mundo aprender a cuidar da sua vida. No seguinte sentido: se a coisa que faz bem para você não faz mal para ninguém, significa que a coisa faz bem a todos. Liberdade é isso.

Não olhando no olho.

“No olhar indiferente flutuava a quietude de paixões diariamente saciadas; e, através das maneiras discretas, transparecia a brutalidade peculiar ao domínio de coisas fáceis, nas quais a força se exercita e a vaidade se satisfaz, como governar cavalos de raça e conviver com mulheres perdidas”. Ah, Gustave Flaubert! Quando você pega homens como esse e os compara com os que estão na TV ou na presidência, algo se contorce dentro de mim. Estamos todos perdidos.

Frasário

Grandes cadeias de livrarias reservam uma prateleira inteira para eles. E lá estão. De longe vejo. Geralmente pequenos. Geralmente rosas. Os livros otimistas. São livrinhos baratos, de poucas páginas recheados de frases para que o leitor “comece bem o dia”.

São inúmeras falas retiradas de grandes romances de Victor Hugo ou Mark Twain descontextualizadas e colocadas na boca desses autores como se fossem suas respectivas filosofias. Mas estamos acostumados com isso desde que William Shakespeare não sabia se seria ou não seria e que Carlos Drummond de Andrade virou apenas uma pedra no meio do caminho. E agora, José?

Não que eu não goste de citações, eu só também não tenho costume de colecioná-las. Já li algumas muito boas. “Leva-se muito tempo para ser jovem”, disse Picasso, por exemplo. Tem uma que li em um desses livrinhos na fila, desconheço o autor, mas lembro que diz: “Mentes são como pára-quedas; só funcionam depois de abrir”. Mas eu acrescento: cuidado que se estiver muito aberta fica fácil colocar bobagens lá dentro.

Para ouvir depois de ler: Those Sweet Words – Norah Jones

Entrevista com Márcia Tiburi

Márcia Tiburi é graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escreveu vários livros de filosofia e recentemente lançou o livro “A Mulher de Costas”, segundo romance da Trilogia Íntima. A primeira parte, “Magnólia”, foi finalista do prêmio de literatura Jabuti em 2006. É também professora, colunista de revistas e integrante do programa “Saia Justa”, do canal GNT. Foi uma entrevista recheada de gesticulação, sinergia, risos e palavras difíceis. Não difíceis daquelas que ninguém sabe o significado, mas daquelas que deixam a fala bonita. Das que me deixavam em dúvida entre admirar a inteligência dela ou me envergonhar da minha ignorância.

P: Os dois primeiros volumes da trilogia falam sobre mulheres. Qual a diferença? Do que se tratam os livros?
R: “Magnólia” é a história de uma mulher que se encontra com ela mesma. E isso acontece, por exemplo, se olhando no espelho, talvez descobrindo uma memória perdida ou tendo que enfrentar seus próprios botões. Enfim, você enfrenta algo que é a sua própria fantasmagoria. É um romance um pouco solipsista, de auto-encontro com aquilo que o sujeito tem de enganação de si. Pois ele é o que ele é, o que ele não sabe que é e o que ele não é. Então há esse jogo de descoberta do dentro e do fora, por um personagem. E “A Mulher de Costas” é uma história de uma mulher que se encontra consigo mesma, que ao invés de se enfrentar com um espelho se enfrenta com um deserto. Enquanto “Magnólia” fica dentro de casa, abre uma gaveta e faz uma viagem pelo jardim pra depois poder voltar – e atravessar com isso vários infernos –, “A Mulher de Costas” é uma mulher que simplesmente faz uma travessia de um deserto para outro deserto. É a história de uma princesa moura encantada, que faz parte da mitologia gaúcha, que é a lenda da salamanca do Jarau, que eu conto da minha maneira.

P: E porque Trilogia Íntima?
Eu comecei a escrever essas histórias todas ao mesmo tempo, tanto “Magnólia”, “A Mulher de Costas” e “O Manto” – que ainda estou escrevendo. E “íntimo” pois queria falar desse solipsismo, dessa convivência e auto-experimentação. O íntimo é essa convivência. A busca solitária e a descoberta. Mas acho que o que tem de meu, tem de universal. As pessoas que leram e me deram retorno, conseguiram entrar nessa viagem. Pois não é uma viagem minha que eu dou a elas, mas uma proporcionada aos leitores através dos personagens.

P: São histórias independentes, porque estão na mesma trilogia?
R: Sim, são livros independentes, mas estão interconectados, há integração entre eles. O que não tem é uma linearidade. Não há uma cronologia que explica “Magnólia” como primeira história e supostamente uma tese, aí “A Mulher de Costas” como antítese e depois “O Manto” como uma síntese. É o contrário! O que tem de comum entre as três é essa experiência de entrega ao mesmo e ao outro e a tentativa de compreensão dessa Banda de Möbius, desses dois lados de uma mesma moeda – onde cada lado é um lado mas compõem um mesmo elemento. Relato ou novela não é uma coisa que eu estou atrás de fazer. Respeito quem faz, claro, mas não é o que eu faço.

P: E a sua filosofia está aparecendo nesses romances?
R: Acho que é a linguagem que aparece na literatura. A filosofia está incorporada em mim e faz parte do meu vocabulário e as questões que estão entranhadas, visceradas, também. Mas eu não tenho um projeto literário à base da razão, ao contrário, eu me interesso por tudo aquilo que foi catalogado por todos os gêneros da literatura. Eu acho que o exercício literário é a sua chance de esquizofrenia (risos). Esquizofrenia para o bem!

P: Como é escrever sobre filosofia atualmente?
R: A filosofia se tornou importante no Brasil, que está aprendendo a democracia. Na ditadura não havia espaço para pensamento livre e é natural que agora a filosofia entre na moda. E tomara que de fato as pessoas se envolvam em reflexões críticas na política, no cotidiano, na responsabilidade ética.

P: Mas há espaço para ela no mundo da informação instantânea?
R: A atenção no próprio pensamento nos torna filósofos do mundo da informação instantânea. O que a filosofia deve fazer é recolocar a atenção que nos é arrancada pelos meios de comunicação no lugar dessa atenção. E, ao meu ver, também mostrar como é o olhar vagaroso sobre as coisas.

P: Você acha que a filosofia está mais acessível às pessoas?
R: Há sim uma vontade das editoras, dos meios de comunicação, da própria esfera culta da sociedade, talvez de uma classe média um pouco mais esclarecida que gosta de cinema e literatura e vai gostar também de filosofia. Mas ainda não dá pra fazer muita festa porque o trabalhador explorado, além de estar excluído do jornal ou da internet, não tem dinheiro para livro nenhum e não está lendo nada. Mas há sim uma vontade de abertura à filosofia por parte das classes lúcidas, que tenta recolocar parâmetros e rever posicionamentos práticos.

P: Como tem sido a resposta para a tentativa de levar filosofia para a TV, com o “Saia Justa”?
R: Um pouco de informação erudita sempre é possível. E esse programa tem um formato, em si mesmo, filosófico. Pois ele é um fórum de mulheres emitindo opiniões. Mais ou menos fundamentadas. É isso que me anima em fazer esse programa: são pessoas diferentes que se propõem a conversar em torno de temas tentando construir um diálogo. Acho que as mulheres foram proibidas de falar ao longo da história da humanidade, então vejo esse programa como um oásis no seio da sociedade patriarcal.

P: O programa é muito criticado por falar demais de sexo…
R: É um programa de TV com todos os defeitos que os programas de TV têm. Mas é que no Brasil se faz muito sexo, há muita pornografia, mas na hora de falar sério sobre o assunto parece que você está cometendo uma heresia. Educação sexual, por exemplo, no Brasil é inexistente. Mas a gente discute também esse cinismo que a gente vive. Sobre política, questões de ética – no sentido de comportamento. Mas é um programa de fala aberta então há muita interferência. E a TV, pela falta de tempo e necessidade de linearidade, limita muito.

P: É verdade que você está escrevendo uma autobiografia tem dez anos?
R: Sim. Começou como um romance em 1998 e eu escrevo e reescrevo, reescrevo. Por que o mais difícil é reconstruir a memória de sua infância. Aliás, se tem alguma coisa boa de se falar da vida de alguém, a meu ver, é a infância, pois o resto é a vida besta de todo mundo. A vida minha e sua que diferença vai ter? Que grandes feitos são tão importantes na vida de alguém para que ele acha que pode contar? Não sei. Mas é que minha vontade é de conseguir memórias perdidas do tempo em que a vida era pura poesia. E no lembrar você vai imaginando coisas, mas eu me divirto com o descortinar desse passado.

Quem quiser ler/ver a entrevista na íntegra é só me perguntar quando vai ao ar ou me pedir um exemplar do jornal 🙂

Cat Power / Chan Marshall diz:

“Eu tinha 19 anos [quando comecei a me apresentar como Cat Power]. Não tinha amigos, só a música. Era a única coisa que me dava um senso de grupo, que me ajudava a me relacionar com as outras pessoas e me sentir menos solitária. E permitia expressar a merda pela qual eu estava passando. Se não fosse isso, nem estaria viva agora”

Para ouvir depois de ler: Hate – Cat Power