As melhores músicas da Alanis que não são do Jagged Little Pill

Eu sei, eu sei. “Jagged Little Pill”, o clássico álbum lançado por Alanis Morissette em 1995, é intocável. Vendeu milhões de cópias, ganhou dezenas de prêmios, virou musical na Broadway e teve cinco hits no topo das paradas – quase metade do disco.

Mas a carreira da Alanis vai muito bem, obrigado, e bem além de “You Oughta Know”. Recentemente lançou inclusive um novo disco, “Such Pretty Forks in the Road”, que tem um tom mais familiar, percorrendo um caminho novo na imagem de jovem rebelde que muitos têm dela – o título é literalmente sobre isso, as belas bifurcações (e possibilidades) de uma estrada. Durante a carreira, criou muita música boa e aqui listei algumas favoritas que, se você não conhece ou tinha esquecido, acho que vale revisitar.

[Playlist no Spotify]

Thank U
A tão esperada volta de Alanis depois do sucesso de “Jagged Little Pill” – JLP, para os íntimos – foi com este single. Uma balada sobre ansiedade e outros transtornos e como saber conviver com eles. Desde então, ela têm o hábito de fechar seus shows com a música – além do agradecimento literal, a balada resume o que as letras de Alanis sempre falam, da capacidade de observar os altos e baixos da sua vida com serenidade, convidando todas as emoções a passarem por você.

Unprodigal Daughter
Nem sempre o filho pródigo à casa torna. Na verdade, pra muita gente, sair da casa dos pais é um alívio. Essa música é sobre os desencantos que nos afastam deles e sobre como os “nãos” que recebemos moldam nossa personalidade. “Se eu tivesse ficado mais um pouco, com certeza eu teria implodido”.

Uninvited
Como parte da trilha-sonora do filme “Cidade dos Anjos” (City of Angels, 1998) – remake do já clássico “Asas Do Desejo” (Der Himmel über Berlin, 1987) – Alanis cria uma letra sobre os personagens: um anjo que se apaixona tão fortemente por uma mulher que abre mão de sua imortalidade e se torna humano por ela – e todas as condições e expectativas deste trato de entrega romântica. “Você fala do meu amor como se você tivesse experimentado amor como o meu antes”, ela canta, como uma solista de tragédia grega. Antes dos violinos se misturarem com as guitarras, ela finaliza: “não é que você não valha a pena, mas eu preciso de um momento para pensar”.

Orchid
Essa música só saiu na edição deluxe do álbum ao qual pertence (“Flavors of Entanglement”, 2008) mas é uma das minhas favoritas. Uma balada acústica com uma camada eletrônica do Guy Sigsworth (produtor de vários clássicos da Björk) em que Alanis conta como tem sido “tratada como uma rosa sendo uma orquídea”.

Woman Down
Essa música de 2012 é tão poderosa que substituiu “All I Really Want” (música de abertura do JLP) como abertura dos shows da Alanis. O hino conta como, a cada nova geração, as mulheres aumentam sua voz e poder – e você já vê isso se comparar sua mãe, sua irmã e sua filha. Ela convoca uma briga alertando que, para acabar com o patriarcado, vamos ter que sujar as mãos e começar algumas coisas do zero. Quem vai limpar esse matadouro depois?

Surrendering
No registro da turnê do álbum “Under Rug Swept” (2002), vemos alguns vídeos do dia que Alanis escreveu essa música. É curioso ver que ela chora revivendo a história da canção mas, ao invés de uma balada triste, temos uma música animada.

Celebrity
Uma crônica sobre a obsessão ocidental com a fama – e o preço dessa busca. Em uma entrevista para Oprah (legendada aqui), ela falou sobre isso: “Em algum nível eu acho que há algum trauma em querer ser famoso, buscar isso. Eu não acho que acontece por acaso para ninguém, francamente. E aí a pessoa traumatizada, neste caso eu, se traumatiza pela coisa que eu achei que seria a cura, o bálsamo. Eu achava que tudo seria resolvido com a fama. Achava que quando eu fosse famosa eu ia ser menos solitária, eu ia ser compreendida, eu ia ser amada e esse amor ia curar as partes quebradas de mim”.

No Pressure Over Cappuccino
Alanis Morissette tem um irmão gêmeo gay e essa música é para ele, é como se os dois estivessem tomando um café, falando sobre a vida. Ela o compara com Jesus, Kennedy e Noé, personagens controversos em suas épocas, com desafios impostos em suas vidas. Escrevi sobre essa música num outro post. Ela foi criada e começou a ser tocada durante a turnê do JLP, nunca entrou oficialmente em nenhum álbum, mas pelo menos entrou no MTV Unplugged.

Se eu tiver conseguido te convencer, montei uma playslit no Spotify com todas essas músicas acima e mais algumas outras favoritas, incluindo os covers famosos de Alanis: “Crazy” (cover do clássico do Seal), “King of Pain” (a linda versão ao vivo que ela fez para o hit do The Police no MTV Unplugged) e “Let’s Do It (Let’s Fall in Love)“, da trilha-sonora do filme “De-Lovely” (2004), que conta a vida de Cole Porter.

“Madame X”: um ano depois

O álbum “Madame X” fez um ano de lançamento essa semana. Se você não gostou ou ouviu pouco, dê uma segunda chance para esse disco. Queria escrever sobre todo o potencial dele, mas para isso precisamos voltar no tempo um pouco. Respira bem fundo e vem comigo.

A história que quero contar começa em 2009, quando o contrato de Madonna com a gravadora Warner acaba. Madonna tinha vindo de uma sequência de dois álbuns muito diferentes finalizando este contrato:

AL“American Life” (2003) teve muitos problemas de divulgação por conta, principalmente, do conteúdo anti-guerra do primeiro single, que não teve o sucesso comercial esperado nos EUA. O mundo se adaptava aos poucos à realidade da pirataria e dos downloads – os shows ao vivo começavam a ser muito mais estratégicos como fontes de lucro primário. Sua turnê anterior, em 2001, focou nos discos que não tiveram turnês respectivas, com poucas músicas antigas. Agora, com a Re-Invention Tour, víamos uma produção consideravelmente maior, com faixas novas mais misturadas aos hits do passado, o que a transformou em uma turnê recordista de arrecadação na época. É dos bastidores dessa tour o documentário “I’m Going To Tell You A Secret”, que também teve sua trilha-sonora lançada pela Warner.

confJá “Confessions On A Dancefloor” (2005) teve um caminho bem diferente: o disco de eurodance produzido por Stuart Price teve uma turnê anunciada antes mesmo de seu lançamento e um nome direto: Confessions Tour. Novamente, os shows bateram recordes, mesmo tendo sido feitos em arenas médias, e o DVD e CD oficiais também venderam bem. O pacote disco + turnê mundial + registro dos shows definitivamente tinha se tornado o mais interessante comercialmente.

Para fechar o contrato, a gravadora ainda tinha direito a lançar uma coletânea. Pela Warner, já existiam “The Immaculate Collection”, com os hits dos anos 80, e “GHV2” (greateast hits volume 2), com os singles dos anos 90, além da “Something to Remember”, só com suas baladas românticas. A última foi “Celebration”, que ao invés de ser um “volume 3”, compreendeu hits de todas as épocas.

Então, quando Madonna rompeu com a Warner, ela assinou um contrato de 10 anos com a Live Nation, a mega empresa responsável por turnês gigantes, como as do U2, Shakira e Jay-Z – com palcos giratórios, telões e muitos efeitos especiais.

HCÉ curioso que uma faixa do disco “Hard Candy” (2008) pergunte: “você está passeando com seu cachorro ou é ele que está te levando pra passear?”, pois é isso que começaremos a ver. Decididos a criar um sucesso comercial igual ou maior ao do álbum anterior, Madonna se juntou com Justin Timberlake, Timbaland, Pharrell Williams e Kanye West para fazer um álbum que soasse urbano e contemporâneo. Há uma unidade na produção, mas Madonna acabou lançando faixas não tão diferente das que esses artistas faziam em seus próprios discos ou em suas outras parcerias. Entretanto, funcionou: a turnê mundial do álbum foi um sucesso absoluto, rodando o mundo por quase um ano e meio e enchendo estádios abertos. Só no Brasil, foram cinco datas, todas em estádios para mais de 80 mil pessoas, todas esgotadas.

mdnaDe lá para “MDNA” (2012), o álbum seguinte, o mundo tinha mudado. Lady Gaga já existia e streamings já começavam a ser tendência, ter um número expressivo em vendas de CD físico tinha ficado mais complicado. A solução foi pecar pelo excesso: a lista de produtores (incluindo de William Orbit e Benny Benassi ao Mika) era tão longa que faltava unidade ao álbum; ao todo foram lançadas 18 músicas, espalhadas em várias versões (CD standart, duplo, deluxe, vinil etc) pois sabe-se que isso estimula colecionadores a comprarem mais de uma versão e que, mesmo com essas divisões, o crédito da venda é contabilizado para o mesmo álbum nas listas de mais vendidos.

Mas, novamente, o objetivo principal foi atingido. Se você achava que o show de Madonna no Super Bowl foi para promover o lançamento do disco, você está errado. Foi já para promover a MDNA Tour, um sucesso maior ainda de arrecadação, com shows em todos os lugares do mundo – no Brasil, ela fez shows no Rio, em São Paulo e em Porto Alegre.

RHTrês anos depois, ela já estava com novos disco e turnê: “Rebel Heart” (2015) e a Rebel Heart Tour. A lista de colaboradores não parava de crescer. Estavam no disco Diplo, Avicii, Kanye West, Nas, Chance the Rapper e até Mike Tyson. Os streamings já tinham dominado e se tornado o principal jeito das pessoas consumirem música. O pagamento aos artistas é por play, então, do ponto de vista comercial, o que é melhor: o ouvinte ouvir o disco inteiro apenas duas vezes ou ter uma música favorita e ficar ouvindo esta sem parar? Sabemos que é a segunda opção: um fã da Nicki Minaj, por exemplo, pode ouvir e re-ouvir a música da Madonna que ela participa, sem precisar comprar o disco inteiro numa loja.

Tudo isso justificaria, novamente, essa mistura de estilos e excesso de músicas (uma das edições do álbum chegava a ter 20 faixas; outra, com menos, não vinha com a faixa-título do disco!). Mas, novamente, missão dada é missão cumprida: os shows à la Cirque du Soleil rodaram por lugares onde Madonna nunca tinha ido antes – como Taiwan, Tailândia, Hong Kong, Macau e Singapura – e a manteve como a mulher que mais lucrou com turnês na história da música (ela está em terceiro lugar na lista geral, atrás de Rolling Stones e U2).

Prestes a completar 60 anos, em 2018, o contrato de shows entre Madonna e Live Nation acaba e isso muda tudo para o álbum que viria, “Madame X” (2019).

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Antes, a cantora tinha chegado a falar publicamente sobre as dificuldades de seus discos anteriores: produtores envolvidos em muitos projetos paralelos, querendo fazer as coisas por e-mail. Disse que sentia falta de reunir as pessoas pessoalmente no estúdio, improvisar, e detestava o formato de ter “sessões” para escrever músicas, que é um processo muito comum nas produções pops atuais – o meme sobre o “cativeiro da Sia” vem dos relatos dela sobre o processo de escrever para os discos da Beyoncé, onde todos ficam enfurnados em uma casa alugada nos Hamptons “e só saem quando o disco está pronto”.

Diz a lenda que com a mudança de Madonna para Lisboa – para que seu filho treinasse futebol em um time de lá -, a cantora se encontrou sozinha em uma cidade sem amigos. E foi guiada aos lugares com músicas tradicionais na cidade, onde conheceu fado e batuka, ritmos que viria a incorporar no novo trabalho.

Madonna já tinha recebido Prince no álbum “Like A Prayer” e alguns rappers em “Erotica”, mas o protagonismo sempre foi dela. Com o fracasso comercial de “American Life”, veio a parceria com Britney Spears, que virou clipe, e uma performance no VMA que também precisou contar com Christina Aguilera e Missy Elliot. E, desde o primeiro álbum com a Live Nation, Madonna vinha cada vez mais aumentando as participações especiais em seus discos: artistas são como marcas e essa é uma maneira eficaz de apresentar Madonna para os fãs do artista convidado e, assim, ampliar seu próprio alcance.

Dessa vez, Madonna estava com o disco pronto e majoritariamente produzido por uma pessoa só: Mirwais Ahmadzaï (mesmo de “American Life”). Eram músicas que iam da celebração da vida até questionamentos políticos novamente, com influência da música portuguesa. Em “Madame X”, pelo menos teríamos menos featurings: Swae Lee, Quavo e Anitta.

Com o disco em processo de finalização, Madonna conheceu Maluma nos bastidores do VMA daquele ano. A possibilidade de uma parceria surgiu e foi bastante insistida pela Interscope, seu atual selo: Maluma é o menino dos olhos do mercado fonográfico que tinha, finalmente, se rendido a nível mundial para a música latina depois do fenômeno “Despacito”.

Dessa conversa e dessa pressão, em poucas semanas, saíram três músicas – duas para o álbum de Madonna e uma para o dele; os dois discos foram lançados com apenas 3 dias de diferença. A impressão é que as faixas de “Madame X” que foram julgadas mais fracas foram colocadas em segundo plano e lançadas como bônus de uma edição deluxe (“Fuana”, “Back That Up To Beat”, “Ciao Bella”) para darem lugar às dessa nova parceria.

Então, senhoras e senhores, “Madame X” foi lançado oficialmente assim:

1. Medellín (com Maluma⁣)

Madonna se imagina novamente com 17 anos vivendo uma outra vida, na cidade colombiana. O pop flerta com o reggaeton e a parceria mistura inglês e espanhol numa medida proporcional o suficiente para fazer a música se qualificar para as paradas latinas, onde performou bem. Na minha opinião, um pouco longa demais para alcançar o objetivo aparente de ser radio-friendly, mas definitivamente bem animada.

2. Dark Ballet⁣

Essa mistura de electro-gospel com Tchaikovsky parece prever as tensões políticas do ano seguinte, com sua letra sobre se rebelar contra o patriarcado, direcionada aos personagens opressores da política e das religiões: “Eles são tão ingênuos / Eles pensam que nós não sabemos dos crimes deles / Nós sabemos, apenas não estamos preparados para agir / A tempestade não está no ar, está dentro de nós / De dentro do seu capuz da Supreme você não consegue ouvir o vento que está começando a soprar?”

No clipe, vemos o julgamento e a condenação de Joana d’Arc, interpretada pelx rapper Mykki Blanco, que assina o clipe com uma frase: “Eu andei nesta Terra, negrx, queer e soropositivx, mas nenhuma transgressão contra mim foi tão poderosa quanto a esperança que carrego”.

3. God Control⁣

Madonna faz uma analogia entre armas e deus, e sobre como perdemos o controle sobre esses conceitos. O clipe mostra um atirador invadindo um clube e é praticamente uma campanha contra o porte de armas nos EUA. Por conta especialmente das mudanças no arranjo ao longo das faixas, a revista Variety considerou “God Control” e “Dark Ballet” como o mais próximo que Madonna chegou de sua própria “Bohemian Rhapsody”.

4. Future (com Quavo⁣)

O dancehall, co-produzido pelo Diplo, fala sobre prestarmos atenção no que está acontecendo no mundo, e só tem um problema: Quavo. O rapper tem um histórico de desrespeito com a comunidade LGBT+ e sua escolha para participar da faixa foi além de equivocada. Como é costume no pop, a participação foi apenas parte de uma troca: Madonna, por sua vez, tinha participado de uma faixa do disco dele, “Champagne Rosé”, também com Cardi B, antes. Pelo menos ganhamos uma performance no Eurovision: a edição do ano foi em Israel e Madonna colocou a bandeira palestina no palco no final de seu show.

5. Batuka⁣

Finalmente chegamos na primeira faixa com a tão falada inspiração portuguesa. Aqui, estamos nas batucadas de Cabo Verde, estilo de música criado há alguns séculos na ilha e, por muito tempo, condenado pela Igreja Católica por ser considerado um ato de rebeldia dos escravos.

Madonna compôs “Batuka” com seu filho David Banda, falando sobre como ainda falta muita caminhada para mudarmos o mundo, pararmos de julgar uns aos outros e tirarmos homens velhos do poder. Ela mistura elementos eletrônicos com o som da orquestra As Batukadeiras. No clipe, inclusive, o protagonismo é delas.

6. Killers Who Are Partying⁣

Voltamos ao fado e à guitarra portuguesa: segundo Madonna, essa foi a primeira faixa que ela escreveu para o disco, onde reflete sobre o fardo de todas as pessoas marginalizadas. Para um assunto tão pesado, a letra me parecia fraca nas primeiras vezes que ouvi mas, se você pensar bem, poucos artistas pops têm usado sua visibilidade para mensagens tão diretas.

“Todos esses homens poderosos estão posicionados em lugares em que comemoram e abusam de seu poder enquanto as minorias estão sofrendo. Os direitos civis que lutamos pela comunidade LGBTQ+, os direitos das mulheres, parece que tudo começou a retroceder [com os governo de direita] e senti que era realmente importante refletir minha raiva, meu senso de traição”, disse em uma entrevista na época do lançamento.

Enquanto ela canta em português que “o mundo é selvagem e o caminho é solitário”, Mirwais capricha na sobreposição dos instrumentos tradicionais com elementos eletrônicos. A música vai crescendo na medida que se desenvolve e a mistura de inglês e português finaliza a música lá em cima. Eu acho lindo.

7. Crave (com Swae Lee)⁣

A balada com Swae Lee, apesar de ser uma música acima da média entre suas baladas mais recentes, não parece fazer sentido com o resto do álbum. A estética novaiorquina do clipe, muito menos. A escolha dele e da faixa para virar clipe e ser lançada antes do álbum foi estritamente comercial. Quando a faixa saiu, foi até notado que o rapper não postou nada em suas redes sociais, por exemplo. No clipe, os artistas nem se encontram.

Definitivamente, a música teria o mesmo ou um maior impacto se fosse apenas com Madonna, ou mesmo substituindo Swae Lee por qualquer outro artista – alguém que se importasse, de preferência. Com certeza essa lista é bem grande. Essas parcerias com novatos, eu interpreto como uma vontade da Madonna (e pressão da gravadora) de se apresentar para audiências sempre mais novas.

8. Crazy⁣

“Eu te coloquei em um altar, mas estátuas podem cair. Me senti tão protegida, que deixei você me levar direto pro meio da guerra”…

A influência portuguesa volta à cena com acordeões nessa música super moderna sobre decepção amorosa, escrita em parceria com Starrah, que já escreveu para The Weeknd e Rihanna. A mistura cria um tipo de “chanson portuguesa” (isso existe?) com Madonna cantando com bastante energia. Talvez seja minha favorita do disco por isso, e também por ser sempre muito legal a ouvir em português.

9. Come Alive⁣

A influência da música africana em Portugal está nessa faixa: as batidas vem dos krakebs, instrumento criado por escravos libertos, feitos com os barulhentos grilhões que eles eram obrigados a usar para que tentativas de fuga fossem ouvidas de longe. É um chamado sobre paz e liberdade individual em uma música colorida com corais crescentes, o que a torna muito bonita, na minha opinião.

10. Extreme Occident

Com elementos de morna e música indiana, Madonna fala de suas experiências viajando o mundo em busca de sua própria identidade. Algumas partes parecem poesia falada e acho a letra redundante. Mas gosto de ouvir por conta da construção do arranjo em direção às linhas em português e, depois, sua desaceleração. É muito legal ouvir prestando atenção nisso.

11. Faz Gostoso (com Anitta⁣)

A música é um cover do hit da cantora Blaya, que nasceu no Brasil mas cresceu e fez sucesso em Portugal. O funk sobre um caso extraconjugal ganhou algumas frases em inglês e a participação de Anitta, que tinha elementos bons para uma parceria por ser grande o suficiente no Brasil e nas comunidades latinas para reapresentar Madonna.

Ver Madonna colocar uma cover em um novo álbum de inéditas já seria decepcionante por si só, mas a música tem erros piores, como a transição para o samba, que soa muito desconexa – esse trecho dava uma visível desanimada nas pessoas nas pistas e blocos de Carnaval em que ouvi a música tocar. A escolha de Anitta faz sentido comercial e digital (e deu certo, olha aí uma música nova da Madonna tocando no Carnaval)  mas, novamente, como no caso de Quavo, é Madonna se aliando a um personagem problemático do ponto de vista político, em um disco que era pra ser reflexivo.

12. Bitch I’m Loca (com Maluma⁣)

Do nada, voltamos para o reggaeton. Maluma parece cantar mais que Madonna na faixa, em que a maior parte de suas linhas são em espanhol. Nada me tira da cabeça que era uma demo do disco de Maluma que ficou de fora de seu álbum e foi reciclada – Madonna notoriamente já tinha feito isso antes em “Hard Candy” com Pharrell (procure pela demo de “Heartbeat”).

Uma música dançante com uma letra sobre nada e um título muito parecido com o de um single anterior, “Bitch I’m Madonna” – o que pode ser premeditado, tendo em vista que este clipe do álbum anterior é o com mais views em todo o canal de YouTube de Madonna (com participações de Beyoncé, Miley Cyrus, Katy Perry e Rita Ora, entre outros). Meu sentimento é que, mais uma vez, a pressão do selo força Madonna a atender algumas demandas de mercado e faz o conceito e a seriedade do álbum se perderem.

13. I Don’t Search, I Find⁣

Mergulhamos agora em um EDM pesado, mas não pulamos de cabeça: o dance noventista vai crescendo aos poucos em uma sensação que remete à uma “Vogue” moderna, com muitas camadas. É uma música que estranhamente funciona na pista e num lounge e se conecta bastante, também, com as primeira faixas do próprio “Madame X”, começando a fechar o arco do disco.

14. Looking for Mercy

Uma das canções mais pessoais de Madonna, nos mesmos moldes das baladas dos álbuns “American Life” e “Rebel Heart”. Fala sobre empatia, solidão, fama e busca por perdão, temas muito presentes em sua vida pessoal – entre polêmicas sexuais, casamentos falidos e buscas religiosas – e, consequentemente, pública. Acho bem bonita.

15. I Rise⁣

Madonna tenta criar um hino sobre sobreviver e prosperar em um mundo cheio de preconceito e violência. A fala inicial da faixa é de Emma González, uma sobrevivente dos atentados armadas à escola Stoneman Douglas, hoje ativista a favor do controle de armas e co-fundadora do Never Again, um comitê de estudantes. A mensagem esperançosa é muito boa para fechar o disco.

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O trabalho tem altos e baixos – cada um tem sua opinião sobre quais são os altos e quais são os baixos. O fato é que, pela primeira vez em muitos anos, Madonna realmente experimentou e fez coisas diferentes do que estava sendo feito por outros artistas. O problema dessa ousadia toda foi que ninguém sabia se a experimentação seria bem vinda. No passado, seus álbuns mais experimentais tiveram recepções muito diferentes.

Não havia mais contratão de shows com a Live Nation (a Madame X Tour que viria a seguir foi bancada por Madonna), a parte grossa dos lucros viria das vendas do disco físico e dos plays em streammings. Então, mais uma vez, ela viu-se obrigada a fazer algumas concessões, que vieram no formato de convidados – e até gêneros musicais – que não faziam parte do plano original do projeto. Inclusive, novamente, vimos o disco ser lançado em standart, duas capas diferentes, deluxe, vinil preto, vinil colorido e até em fita K7 – que custava só 4 dólares -, naquele mesmo esquema de esforço de concentração de compras.

Madonna costuma fazer uma festa particular com amigos para ouvirem seus discos pela primeira vez e essa festa já tinha acontecido antes do VMA em que a cantora conheceu Maluma. Por isso, é justo dizer que, originalmente, o álbum nem contava com ele. Depois de sua entrada no projeto e até o lançamento, o discurso tinha se adaptado e, em várias entrevistas, Madonna começou a classificar o álbum como “mundial”, e Maluma virou a co-estrela do primeiro single.

Levando tudo isso em consideração, recomendo: ouça apenas as faixas de “Madame X” que são só com Madonna.

Se você tira todas as faixas com participação especial, você tira do disco a influência daquela pessoa (e de tudo que vem junto dela em matéria de produção e interesse comercial). O que sobra é o que parece estar mais perto do que Madonna havia prometido e queria fazer originalmente: um álbum político com música eletrônica influenciada pela música portuguesa. Ponto.

A experiência de ouvir assim é completamente outra. Se você não ouviu muito o disco na época, tente agora, um ano depois do lançamento, fazendo isso. A mistura maluca de sons dá lugar às 10 músicas mais legais, que mais têm o que dizer.

Continuando a história

Agora, com a entrega de “Madame X”, o contrato com a Live Nation chegou ao fim. Curiosamente, Madonna ficou sem gravadora por poucos dias e logo voltou para a Warner – os detalhes e valores da negociação não foram divulgados.

Sua participação no remix de uma música da Dua Lipa foi o primeiro projeto na nova-antiga gravadora. O retorno pode indicar um foco maior em álbuns ao invés de turnês (é fato que a Madame X Tour teve alguns problemas pelo caminho por conta de logística e da própria saúde de Madonna) e talvez mais independência de M nos projetos.

Além destes dois pontos, espero que a volta para a Warner reacenda o brilho no catálogo de Madonna: seu primeiro disco é de 1983, todo ano tem algum álbum, single ou clipe clássico fazendo aniversário e estava tudo passando em branco. Durante os anos com a Live Nation, por exemplo, “Like A Prayer” comemorou 30 anos. Os fãs esperavam um relançamento, um box comemorativo, edições limitadas, demos e faixas inéditas lançadas – mas tiveram que se contentar com uma mera playlist de remixes no Spotify. A Warner não tinha interesse ou contratualmente não podia fazer nada além disso. Talvez a volta à gravadora antiga mude este cenário.

Quem viver, ouvirá.

M.I.A. x Madonna

[Esse texto é bem pessoal e apenas sobre as citações feitas sobre Madonna no filme, para saber mais sobre a obra, recomendo que você clique nesse link aqui.]

Na última semana eu assisti o documentário “Matangi / Maya / M.I.A.”, que conta as desventuras e ascensão de M.I.A., provavelmente a celebridade mais famosa no ocidente nascida no Sri Lanka.

De forma bem resumida, o documentário mostra um pouco da vida pessoal da estrela: depois de mais de 10 anos do debut com o disco “Arular”, fica claro o quanto M.I.A. influenciou muito da música que veio depois, inclusive sendo uma das responsáveis pela explosão do Diplo mundo afora. É fácil perceber que sim, o mundo queria suas danças, seu som e seu jeito de se vestir, mas não queria sua militância. Parte da decepção de M.I.A. na sua ascensão a celebridade internacional foi o fato de que ninguém a queria ouvir se ela estivesse falando sobre a guerra no Sri Lanka.

Parte desse movimento vinha sob o rótulo de que a artista era hipócrita: queria ser a advogada de uma realidade que não era sua – falava sobre a guerra e a pobreza de um país, enquanto nadava no dinheiro morando em outro. Embora só tenha tido contato com a guerra durante 2 meses que passou em Sri Lanka gravando um documentário com seus familiares, anos antes de sua fama como cantora, ela morava em Londres como refugiada desde bem pequena. Ela saiu do país inclusive por conta do envolvimento de seu pai com os grupos armados de resistência, mas sua vivência com esse universo violento nunca existiu de verdade – sua própria família fala isso no documentário.

E é aqui que entra Madonna na história.

Em um momento, M.I.A. mostra seu desespero em uma brincadeira com sua empresária, ao telefone: “Como eu faço para minha música tocar no rádio?”, ela perguntava. Neste ponto, a artista estava outra vez envolvida em escândalos bobos. Ao longo da carreira, ela foi alvo de vários: além da acusação de hipocrisia quanto ao seu ativismo, muita gente não entendia seu sarcasmo, a considerando uma ameaça e, até mesmo, uma terrorista. Com esse caminhão de polêmicas na cabeça, os negócios andavam complicados.

Na cena seguinte, ela recebe um convite de Madonna, que quer gravar uma faixa e um clipe com ela e Nicki Minaj, e apresentá-la ao vivo em um dos eventos com maior audiência do planeta. “Uma ítalo-americana, uma afro-americana e uma tâmil no Super Bowl?!”, pergunta sua irmã, comemorando o convite com sorrisos e choque. Mas parece que a festa durou pouco.

O documentário é um remendo com filmagens de várias épocas e, em uma delas, M.I.A. fala sobre os Estados Unidos: “Eu usava All Star quando era jovem e amava os EUA, mas as coisas mudaram um pouco depois de 2001”, provavelmente se referindo ao aumento do preconceito às religiões não-cristãs e às políticas do país com imigrantes depois dos atentados de 11 de setembro. Na cena seguinte, ela esta se preparando para gravar o clipe de “Give Me All Your Luving“, do álbum “MDNA”, de Madonna, reclamando de seu figurino de cheerleader. “Sobre o que é o clipe?”, pergunta a pessoa filmando. “Sobre os Estados Unidos”, M.I.A. responde. A plateia ri.

O clipe de Madonna e o novo de M.I.A., “Bad Girls“, saíram no mesmo dia no YouTube, com uma diferença de 10 minutos entre eles – mas hora nenhuma dizem qual das duas divas publicou primeiro. Na sequência, o documentário mostra trechos do clipe em parceria com Nicki Minaj: M.I.A. de líder de torcida e jogadores de futebol-americano protegendo a rainha do pop de levar tiros. Depois, mostra o trabalho da cantora srilankesa: mulheres com armas e sheikes fazendo drifts com carros. A plateia ri da diferença entre os vídeos e aplaude o segundo.

Para mim, o que essa cena diz muito claramente é que a provocação do intervalo de 10 minutos de lançamento entre os clipes tinha virado algum tipo de rivalidade entre as duas artistas, pelo menos do lado de M.I.A.

“Eu vi Madonna, uma pessoa que eu ouvia as músicas quando eu estava crescendo, obedecendo as pessoas sobre o que ela devia ou não usar e fazer”, comenta M.I.A, sobre os ensaios e a apresentação no Super Bowl em que ela decidiu mostrar o dedo do meio para as câmeras. Depois de fugir dos executivos do evento que queriam dar uma dura nela nos bastidores, ela chega em casa e abraça seu filho. “Eu não gosto da NFL”, diz a criança sobre a Liga Nacional de Futebol-Americano dos EUA. “Esse é o meu filho!”, ela sorri.

Um outro lado (dessa parte) da história

Nas entrevistas para promover o documentário, a cantora se dirigiu especificamente a estas cenas, criticando artistas que, “como Madonna”, a usaram. M.I.A. diz que sua popularidade e seu som chamaram atenção, mas que as pessoas acabavam apenas “roubando” muito de sua arte e nada de sua militância. E é justamente essa história de rancor que não fecha para mim.

Primeiramente pois a própria M.I.A. usa dessa fórmula, mesmo que a apresente embrulhada em um papel diferente. Seu próprio documentário mostra a cantora viajando ao redor do mundo e gravando vozes e sons de pessoas em vários países, incluindo Jamaica, e sua parceria com Diplo, que levou muito do nosso funk carioca para seu som – nada disso é amplamente creditado como criação de terceiros, o mérito vai pra ela sozinha.

Outra coisa é que é muito claro que Madonna estava em uma fase bem diferente com os EUA. Seu álbum mais político de todos, “American Life” (2003), provocou muita ira conservadora no governo Bush, houve boicote e ameaças até contra os filhos da cantora. De lá pra cá, Madonna envelheceu e foi se adaptando ao mercado para voltar ao coração dos americanos – o maior mercado do mundo. Não é uma coincidência que antes de “American Life” a loira tinha álbuns com poucos produtores e uma seleção diminuta de faixas em seus discos. Depois do fracasso comercial de 2003 é que ela foi caçar parcerias com Britney Spears, Timbaland, Justin Timberlake, Diplo, Nicki Minaj e a própria M.I.A. Uma tentativa dela de se manter relevante e se mostrar não-mais-tão-polêmica. O álbum imediatamente seguinte, “Confessions On A Dancefloor” (2005), tinha até uma música chamada “I Love New York”!

Um dos grande trunfos do documentário é exatamente tentar mostrar como equilibrar a vontade de ser relevante e ganhar dinheiro com a vontade de construir um legado e fazer a diferença no mundo. Algo que M.I.A. podia ter trocado uma ideia com Madonna sobre: como sabemos, a loira gosta de se posicionar politicamente sobre vários assuntos (foi pioneira em falar abertamente sobre AIDS, foi uma figura importante na visibilidade do caso das Pussy Riot, fez campanha pelo Obama e se posicionou contra Bolsonaro recentemente, para citar poucos casos). Mas também bota a mão na massa: seu maior xodó é o país africano do Malauí, de onde adotou quatro crianças e onde construiu 10 escolas (mais 4 estão planejadas para 2019) e um hospital pediátrico completo, além de uma escola no Paquistão.

Nada disso é coberto na grande mídia, nada disso é assunto quando Madonna vai a um talk-show e não vejo ela reclamar disso em lugar nenhum. Mas eu sei, ter trabalhos beneficentes é bem diferente de tentar expôr uma guerra. O fato é que, antes do Super Bowl, elas estavam amiguinhas – ou pelo menos parecia que dava para todo mundo se aguentar.

Em todas as entrevistas para divulgar o showzão que faria, Madonna garantia que não haveria baixaria. Sabendo de seu histórico de shows provocativos e querendo a todo custo não repetir a polêmica de Janet Jackson no evento (que expôs um de deus seios sem querer), a NFL estava pressionando muito a cantora por um “show família” – afinal, o jogo é transmitido com classificação etária livre por lá. E entre gladiadores dançando “Vogue” e LMFAO fazendo participação, era mesmo pra ter dado tudo certo. Só não deu por conta do maldito dedo do meio da M.I.A.

Os americanos são muito sensíveis a tudo isso e o caso ganhou proporções absurdas, inundando revistas e programas de fofoca. “Infantil”, foi assim que Madonna explicou e reduziu a ação em entrevistas. O que imagino que corra nos bastidores entre as duas seja ressentimento por conta desse ato. M.I.A. fugiu das claras regras da organização, pareceu tentar roubar o holofote de sua anfitriã e saiu com uma multa de 16 milhões de dólares da NFL nas costas. Se você levar isso em conta, enxerga como os pontos dela sobre Madonna em seu documentário têm um tom quase vingativo.

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As palavras exatas de Madonna sobre o caso: “Eu fiquei muito supresa. Eu não sabia nada sobre isso”, confessou a Material Girl. “Eu não fiquei feliz com aquilo. Entendo que é punk rock e tudo, mas pra mim havia um sentimento de amor e boas energias e positividade [no show], pareceu negativo. Foi uma coisa muito adolescente, irrelevante, de se fazer. Não foi no lugar certo.”

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A atriz Nasim Pedrad como M.I.A. no “SNL”

Tudo isso ainda sem falarmos de uma coisa muito óbvia: M.I.A. não era obrigada a aceitar participar de nada disso. Inclusive, no sábado depois do Super Bowl, o programa de humor “Saturday Night Live” fez um esquete sobre o fato e a atriz interpretando a cantora explicava o incidente com essa piada sobre seu dedo do meio: “Eu queria mostrar que eu estava brava sobre uma situação que eu aceitei fazer voluntariamente”. Não podia ser mais verdade.

M.I.A. sente uma necessidade real de ser a porta-voz de seu país no ocidente, de ser ativista, o que faz todo sentido do mundo e ela tem esse direito. Mas a vontade dela de ser reconhecida como ativista é a mensagem que fica do documentário e isso me soou um pouco problemático, mas aí já é outra história.

Quando ela lançou o clipe de “Borders“, falando sobre imigrantes ilegais, lembro de um amigo dizer que o clipe era lindo e necessário, mas era basicamente a cantora posando na frente do caos. “Nesse caso, qual a diferença entre M.I.A. e Nana Gouvêa?”, comentou rindo. O mesmo comentário pode ser feito sobre “American Life”, se você pensar, sem querer diminuir nenhum dos dois trabalhos. Mas é cada diva falando sobre o que conhece, sobre um momento de seu país, sobre aquilo que é importante para elas. E vamos lá, “Give Me All Your Luvin” está mesmo longe de ser uma música política, mas uma “Bucky Done Gun” também não é, e ninguém vê problema nisso.

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M.I.A. gravando com Madonna: além de “Give Me All Your Luving” elas cantam juntas em “Birthday Song”, gravada no aniversário da M.I.A., de presente pra ela.

Na cena de comparação de clipes, a plateia do cinema riu de um clipe e aplaudiu o outro, se esquecendo que existe uma coisa em comum nos dois: a própria M.I.A. Por isso são quase engraçados os pontos que ela pinça para criticar Madonna: ela se sente superior por não “jogar o jogo” enquanto reclama de não ser ouvida, mas desfruta de inúmeros privilégios e não recusa a oferta de participar da música, do álbum, do clipe e do show de Madonna, uma das maiores popstars vivas do mundo. Isso não é “jogar o jogo”, afinal?

Meu palpite daqui, bem longe de saber a verdade delas, é que no meio de sua infantil vontade de aparecer, M.I.A. queimou a ponte com Madonna e continua botando lenha nas chamas. As duas teriam muito o que conversar ainda e muita música boa – e melhores que a lamentável “Birthday Song” – poderia sair dali. Mas os santos (sejam católicos, hindus ou cabalistas) não bateram.

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“Madonna, hmmm, você me empresta 16 milhões de dólares?”

Silêncio como estratégia de marketing

Com a entrevista de Manuela D’Ávila no “Roda Vida”, da TV Cultura, minhas redes ficaram enfurecidas. Ela foi interrompida sem parar e as respostas que conseguia dar não eram levadas à sério, o  time montado para entrevistá-la mais parecia ter vontade de atacá-la que qualquer outra coisa.

O episódio fez com que muitos pensassem que esse era o motivo de Jair Bolsonaro não ter topado ser entrevistado pelo programa. Que ele não sobreviveria. Mas provavelmente essa era a estratégia dele mesmo.

O “mito” que foi construído em cima dele não foi sobre seus feitos políticos, mas sim sobre sua personalidade. Ser colocado contra a parede iria mais prejudicar que ajudar a sua campanha. Acredito que a estratégia dele será ficar calado até o final ou que, durante esse tempinho quieto, ele está sendo muito bem treinado para sair do casulo com falas muito bem ensaiadas. Não faz sentido ele ter feito tanto barulho antes e, agora, que era hora de ele estar fazendo mais barulho ainda, ele ficar calado.

[Edit: esse texto foi escrito antes de Bolsonaro ter, enfim, topado ir ao Roda Viva. Entretanto, hoje, dia 23/08/18, saiu a notícia que ele não participará de mais nenhum debate presidencial]

É uma estratégia: nos momentos de silêncio, você aproveita para contabilizar a impressão que você deixou. O que estão falando de você, o que acreditam que você vai fazer e, só aí, você aparece – tendo absorvido todo esse feedback gratuito e se repaginado de acordo com as demandas. Beyoncé faz algo parecido há anos.

Obviamente não estou comparando Beyoncé com Bolsonaro, bom deixar claro. Eles têm cabeças bem diferentes e trabalhos que não preciso nem comparar. Mas eles são bons personagens para exemplificar o silêncio como estratégia de marketing e de (re)lançamento.

A cantora posta muito no Instagram, por exemplo. E, no começo de sua presença na rede social, ganhou seguidores com a estratégia de postar por lá os looks que ia usar em shows e tapetes vermelhos, antes que veículos de mídia a fotografassem. As fotos são sempre bem posadas, tratadas no Photoshop, todas sem legenda, o perfil não segue nenhuma outra conta – nem o perfil do próprio marido – e não tem nenhum textinho de descrição.

Deixando o fanatismos de lado, Michael Jackson era a pessoa que mais trabalhava a ideia de que ele era o Rei do Pop, apesar de sua importância e suas vendas terem caído ao longo de sua carreira, andando ao lado de suas excentricidades. Beyoncé faz a mesma coisa, mas ao contrário: o silêncio não é exclusivamente para prestarmos atenção nas músicas – como argumentam alguns fãs – mas faz parte de uma boa estratégia para a manutenção da imagem imaculada de diva que ela se propõe e quer manter para os fãs – que ao mesmo tempo que a celebram, também demandam essa manutenção isso dela.

Ela nunca vai ser mal interpretada se tudo que ela expressa – no caso, através da música e dos clipes – é pensado com muita antecedência e por várias pessoas; ela nunca vai dar uma bola fora ou se contradizer em uma entrevista se ela não der entrevista alguma. Essa falta de deslize ajuda a construir o mito. Foram os deslizes, digamos assim, que fizeram a coroa de Michael Jackson ruir quando ele ainda estava vivo.

Parece inovador, mas não é uma novidade.

Em 2014, a rede de fast-food Taco Bell lançou seu próprio aplicativo de delivery e, na mesma semana, fechou suas redes sociais, parando de postar em todas elas desde então. As redes já voltaram a ser atualizadas, mas o golpe publicitário foi perfeito: se você quer nos conhecer, nos conheça experimentando nossos produtos – e não ouvindo nossas propagandas sobre eles.

O Snapchat tinha uma estratégia similar um tempo atrás: quando o aplicativo estava no auge de crescimento, seu Facebook tinham apenas as notícias antigas sobre o lançamento da start-up, mais nada. Em contrapartida, o Twitter era muito ativo, mas sem nenhum post institucional.

Ao invés de tweetar sobre o lançamento de um filtro ou algum conteúdo especial, a conta do Snapchat buscava por pessoas que já tinham tweetado à respeito das novidades de forma orgânica e, aí, simplesmente dava RT. A estratégia deixava claro que a experiência do aplicativo acontecia apenas dentro dele, em nenhum outro lugar.

Isso tudo tem um nome: marketing silencioso. Em 2012, essa era a tendência que o futuro nos reservava, lembra?

Primeiro você tem que fazer perguntas e ouvir em silêncio o seu mercado-alvo (sejam eles clientes, fãs ou eleitores) para descobrir o que eles querem. E então oferecer exatamente isso a eles, do jeitinho que eles querem consumir. Não é coincidência que o empoderamento feminista negro das Beyoncés e a homofobia conservadora machista militarista dos Bolsonaros aconteçam ao mesmo tempo. São demandas de mercado da nossa sociedade de consumo, também polarizada. Quando você lança no mercado um produto que vende, você insiste nele. Se não vende, você passa para o próximo.

Outro ponto importante é fazer marketing por nicho, micro-targeting, de um jeito que passe quase despercebido. A gente acha que um candidato ou uma marca estão sumidos, mas será que estão mesmo? Eles podem estar falando, nesse minuto, com milhares de pessoas, mas fora da sua bolha, abaixo do seu radar. Geralmente antes de você ver o outdoor, já tinha um monte de gente no Instagram usando o produto, mas você não seguia nenhuma das pessoas escolhidas. Você só recebeu a informação quando chegou no outdoor, quando chegou para as massas. É igual.

Na publicidade, sabemos que gritar com o consumidor não funciona mais. Ele quer mais do que isso, mas ainda tem muita marca e agência insistindo em gritar mais alto que o concorrente ao invés de criar um jeito diferente de falar sobre si. Ouvir é um bom primeiro passo nesse sentido: antes de lançar uma propaganda (ou um disco ou uma campanha eleitoral), o que estão falando de você? Com isso em mãos, você se programa melhor para enfatizar aquilo que estão falando mais e falando bem e evitar repetir aquilo que estão falando menos ou mal.

Funciona. É assim que marcas, autores, políticos, diretores e artistas “sempre acertam” e se tornam lendas, mitos, divas, best-sellers.

Fãs e eleitores odeiam ser vendidos, mas gostam muito de comprar – eles são, acima de tudo, consumidores, seja de produtos, discursos ou ideias. Com empatia e algum tipo de vínculo emocional, você basicamente consegue vender o que quiser para quem quiser.

É como dizem: se o coração quer comprar, a cabeça vai junto.

 

“Music” salvou minha vida

Lembro muito bem do clipe de “Music”, praticamente uma paródia de todos os clipes de rappers da época, cheios de ostentação e objetificação de mulheres. Madonna adaptou esse conceito e, apesar de usar todos os mesmos elementos, o resultado é significativamente outro, uma girl’s night out elevada ao quadrado.

Ela passa quase todo o clipe sentada, para disfarçar a barriga de gravidez que começava a aparecer: ela estava grávida de Rocco na época e a gravação do clipe precisou ser adiantada por conta do vazamento de algumas demos da música pelo Napster. Eram outros tempos.

O que importa é que esse clipe mexeu com o mundo na época. Foi a primeira vez que Madonna era #1 em anos, saindo da fase – digamos – esotérica de “Ray of Light” e se mostrando uma mulher madura que ainda gosta de festa e de uma música eletrônica bem diferente das que havia experimentado antes.

“Music”, o álbum, salvou a minha vida.

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Capa do álbum (Foto: Jean-Baptiste Mondino / Design: Mattew Lindauer)

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Antes de “Music” eu era ainda mais chato que sou hoje: estudava em um colégio batista onde todos os coleguinhas eram fãs de Backstreet Boys e/ou Sandy & Júnior. Eu tinha pavor do que estava sendo produzido pelo pop na época e me achava o roqueirinho underground por ouvir Nirvana, Blur, Green Day, Alanis Morissette e Joy Division. Ai, ai, jovens do rock.

Só pra deixar registrado: anos depois, sendo DJ de uma festa especializada em anos 1990, eu já fiz as pazes com todos esses sons. Eu não ouço Spice Girls no trabalho, por exemplo, nunca fui fã e não vejo nada de evocativo ali, mas consigo achar pelo menos divertido agora. Está tudo bem.

Fato é que foi “Music” que me ajudou muito a abrir minha cabeça a novos sons. Acabei ganhando esse disco de aniversário no ano de lançamentro, 2000, ouvi duas vezes, achei o som esquisito e deixei de lado, apesar de gostar das músicas que viraram singles. Três anos depois, foi o lançamento do álbum seguinte de Madonna, “American Life”, que eu gostei muito. Foi assim que comecei minha volta no tempo e resgatei esse álbum.

E estava tudo lá: pop, dance, folk, o famoso “acid rock”, vocoder e sintetizadores por cima de percussão e cordas – eu amo muito essa combinação.

“Music”

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Capa do single de “Music”

Hey Mr. DJ, put a record on. Eu ouvia a música apenas assistindo o clipe na época e ela passava apenas como uma música pop okay. Hoje, prestando atenção no som, eu idolatro como ela é construída: a introdução seta o tom muito bem, os barulinhos, especialidade do produtor Mirwais Ahmadzaï, são uma delícia. Além da voz de Madonna estar bem trabalhada – não no sentido de autotune, mas de harmonia mesmo. Ela canta sem backup vocals e sem duplicação de voz, o que é raro na música eletrônica, mas Mirwais trabalha a voz em eco e com efeitos em momentos específicos da canção, que vai crescendo até estourar. Se você já acostumou com esse hit, feche os olhos, coloque o fone de ouvido e ouça com novos ouvidos.

 

“Impressive Instant”

Ahmadzaï traz de novo seus barulinhos e um uso muito inteligente de autotune, sublinhando as melhores partes dessa letra sobre universo e amor, e apresentando o tom experimental do disco. Claro, o som é semelhante ao que estava sendo produzido de forma underground ou nichada na música eletrônica da Europa na época, mas ainda assim podemos chamar de experimental por ser Madonna em uma de suas últimas tentativas bem sucedidas de ser uma antena que capta e reapresenta o que há de mais legal sendo feito no mundo. Apesar do disco anterior já ser muito eletrônico, “Music” é o verdadeiro tour de force de Madonna nesse universo eletrônico – e não “Confessions On a Dancefloor”, como muitos têm impressão.

“Runaway Lover”

William Orbit, o cara por trás de “Ray of Light”, volta a trabalhar com Madonna nessa faixa, uma das mais animadas das parcerias entre eles, mas tudo dá certo por conta da letra confessional sobre um amor que desapareceu sem deixar tristeza alguma – se existe uma combinação mais gostosa que letra triste e arranjo animado, eu não conheço. E a paradinha no meio da música, no “it doesn’t pay”, é de outro mundo, além do mesmo efeito usado no final da música, como se estivéssemos desligando uma máquina.

“I Deserve It”

Costumo brincar que vou cantar essa música no meu casamento. A balada voz e violão ganha uma bateria eletrônica que combina muito com o conceito do disco, fazendo uma música “acústica” não destoar do resto do álbum. É uma declaração de amor à Guy Ritchie, na época seu namorado e pai de seu novo filho, e que mais tarde se tornou seu marido. O que mais gosto na letra é a não-negação do passado, especialmente por vir de Madonna. É como se ela cantasse que sim, já pegou muita gente e se expôs bastante, mas tudo ficou irrelevante, nada disso importa à partir de agora que ela está com o cara certo. E o agradece. Linda.

“Amazing”

William Orbit produz essa faixa, que me lembra muito “Beautiful Stranger”, outra produção dele. A voz de Madonna está ótima, melancólica por cima das batidas, no meu tom preferido dela. O instrumental também é crescente, mas cheio de pequenos momentos de subida/descida e com uma bateria marcante e guitarras elétricas por cima dos sintetizadores. É uma faixa igualmente comercial e “lado B” e eu gosto dessa demonstração de boa produção, quando você ouve um álbum pela primeira vez e não é óbvio que músicas serão ou não singles pois todas são igualmente bem produzidas.

“Nobody’s Perfect”

A balada mais não-comercial que Madonna já fez na vida: a letra podia muito bem estar por cima de uma orquestra e entrar no “Something To Rembember”, a coletânea de baladas que ela lançou nos anos 1990, mas está tudo por cima de sintetizadores, um autotune propositalmente exagerado e um violão remixado. Existe uma paradinha acústica no meio que é uma delícia, só violão e voz pura. Aí voltamos para o electro. O que mais gosto aqui é que a música começa e termina em lugares completamente diferentes, uma ação que Madonna só faria desse jeito, de novo, em “She’s Not Me”, alguns anos depois.

“Don’t Tell Me”

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Capa do single de “Don’t Tell Me”

Aqui também tem um violão remixado, que é quando na mesa de edição cria-se uma música inteira editando e repetindo um trecho com poucos acordes. A bateria eletrônica entra e Madonna muda quase que completamente a música “Stop (Don’t Tell Me)”, criada por Joe Henry – que é casado com uma de suas irmãs – adicionando até mesmo violinos à batida eletrônica. Nas mãos dela e de Mirwais Ahmadzaï, a letra abstrata sobre amor ganha uma versão animada e com um trabalho de voz incrível: ouça de novo prestando atenção em como Madonna opera em tons separadamente, com uma voz interferindo na outra em momentos chave e um backup vocal com autotune, dando ares futurísticos para o que era uma música country.

 

“What It Feels Like For A Girl”

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Capa do single de “What It Feels Like For A Girl”

Charlotte Gainsbourg abre a canção recitando uma fala do filme “Jardim de Cimento” (1994), sobre a vontade secreta dos homens em saber como é ser uma mulher. Com muita delicadeza, Madonna fala sobre o machismo do dia a dia, das pequenas coisas, e vai direto na ferida. Novamente uma balada significativa, com um verniz eletrônico fortíssimo, mas com pouca mudança no vocal – tudo produzido por Guy Sigsworth, um dos produtores queridinhos da Björk na época. No clipe da canção, Madonna critica a hiprocrisia da sociedade sobre o que é certo e errado em um curta-metragem de ação dirigido pelo então já marido, Guy Ritchie, de filmes como “Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes” (1998) e “Snatch” (2000). Eu entendo o conceito do clipe e como um remix da música faz mais sentido ali, mas é uma pena que nem todo mundo conheça essa letra tão bem escrita.

 

“Paradise (Not For Me)”

A música com mais zueng-zueng do álbum. Pra mim, é uma canção sobre a relação que temos com nossas religiões durante nossa infância, geralmente impostas pelos nossos pais. Acho que diz respeito a esse vestígio que uma crença deixa dentro de você, de você não saber se acredita em algo por realmente acreditar ou por ter sido ensinado que isso é o correto. E o refrão tem a ver com a descoberta que esse sistema de crença não funciona mais, de verdade, pra você. “Eu estive tão alta, eu estive tão baixa. No alto dos céus e no chão. Eu estava tão cega, eu não conseguia enxergar: o seu paraíso não é para mim”. Depois de passar por altos e baixos, fica claro que todos aqueles conceitos são excludentes e que as religiões, na verdade, não te aceitam como você é – e que elas, de verdade, não te salvaram nos momentos que você estava caído. Falo mais sobre essa música, tão significativa pra mim (e aparentemente também para Madonna) nesse link aqui.

“Gone”

Como virou tendência desde “Ray of Light”, Madonna deixa para o final a música mais escura e pessimista. Nesse caso, uma reflexão sobre perdas e ganhos, uma das melhores letras dela, apontando o caminho de maturidade (na época ela tinha 42 anos) que ela estava seguindo. Novamente, uma camada eletrônica aplicada a uma base acústica e um bom trabalho de voz, pontualmente duplicada mais perto do final.

Esse álbum é realmente um totem do pop, o começo de muita gente na música eletrônica e uma inspiração pra tanto artista que não dá tempo nem de citar. Depois de escrever tudo isso, só me resta ouvir de novo e tentar descobrir algum barulinho que eu não tinha percebido antes.

Sim, já são quase 20 anos depois, mas ainda encontro coisa nova nesse disco e nada, absolutamente nada, parece velho. Não é isso que caracteriza uma obra-prima, afinal?

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Parte do encarte do álbum (Foto: Jean-Baptiste Mondino / Design: Mattew Lindauer)

Doente de tão sozinha

“Guys and Dolls” é uma comédia da Broadway que até virou filme (com Marlon Brando e Frank Sinatra!) em 1955. Em resumo, a história é sobre um apostador que está sendo perseguido pela polícia e, no meio da bagunça, precisa lidar com sua noiva: já tem 14 anos que eles estão juntos e ela quer logo se casar com ele. Falando assim, parece uma história bobinha, cheia de clichês típicos da época.

A noiva se chama Adelaide e ela é uma cantora de cassino, loira e linda, mas a personagem é meio burra. Sua música principal na história acontece quando ela está lendo um livro que fala que mulheres que passaram dos 30 tem tendências psicossomáticas a ficarem doentes. Logo, ela deduz que essa sua gripe, que não passa nunca, é culpa do cara que não quer casar com ela.

Na mais recente versão de “Guys and Dolls” na Broadway, Adelaide foi interpretada por Lauren Graham (de “Gilmore Girls”) e essa é a versão dela para a canção.

Acho engraçada a cena. O desespero pelo matrimônio chega a ser cômico – e é essa mesma a intenção do roteiro. Mas aí, mais para o final, depois de todas as muitas confusões da história, ela canta praticamente a mesma coisa, mas dessa vez mais devagar, de forma mais pensada, revelando uma letra mais honesta. Aí você entende melhor o desejo dela – e é de partir o coração.

Esse foi o único vídeo que achei dessa versão da música, em uma noite de revival de um teatro.

in other words,
just from sitting alone at a table reserved for two
a person can develop the flu

you can bundle her up in her woolies
and I mean the warmest friend
you can wrap her in sweaters and coats
till it’s more than her brain can stand
if she still gets the feeling she’s naked
from looking at her left hand
a person can develop the flu, oh the flu

a hundred and three point two!
so much virus inside
that her microscope slide
looks like a day at the zoo!

just from wanting her memories in writing
and a story her folks can be told
a person can develop a cold

😦

Perguntei pro garçom do karaokê quantas vezes ele ouve “Evidências” por noite

Se ao ouvir a frase “quando eu digo que deixei de te amar” você já completa com “é porque eu te amo”, eu vou contar agora para você uma história muito triste.

Como muitas pessoas, eu amo um karaokê. Eu gosto de cantar – apesar de não ser bom no assunto – e gosto do evento que acaba virando ir em um.

Vamos em um karaokê oriental tradicional, com velhinhos cantando em japonês? Vamos em um mais de playba? Um mais roots com cerveja a 5 reais? Em uma salinha reservada? Semi-reservada? Palco público? A noite é uma criança.

Gosto também dos personagens que encontramos: o velhão que vai sozinho e bebe whisky e canta Frank Sinatra; o carinha que canta diva gay com toda potência e fazendo a coreografia; os amigos que se unem para cantar aquele one hit wonder da banda da adolescência deles; as tias que cantam MPB anos 80 envergonhadas, os coxas que cantam Mamonas Assassinas achando que aquelas letras são engraçadas.

Mas acima de todos e tudo está o grande hit nacional do karaokê: “Evidências”, clássico de Chitãozinho e Xororó.

E era isso mesmo que alguém estava cantando quando o garçom trouxe minha comida. Enquanto ele servia, sorridente, perguntei:

– Você ouve muito essa música aqui, né?

Ele, literalmente, perdeu por completo o sorriso. Soltou o último item na mesa, colocou a mão na testa, e disse:

– Ouço.

Eu ri, achando que era para ser uma piada. E perguntei outra coisa:

– Qual foi o máximo de vezes que você ouviu isso numa noite?

– Dezesseis – disse, rapidamente, como se a resposta estivesse na ponta da língua e isso fosse uma anedota recorrente dele.

Eita.

Fiquei calado e continuei assistindo às meninas que estavam no palco gritando “Evidências” a plenos pulmões no microfone precário do lugar, todos nas mesas cantando junto. Super good vibe, claro. Mas o cenário era exatamente o oposto na cara de quem trabalhava ali todo dia. Uma coisa é ir no karaokê uma vez a cada dois meses; outra é estar dentro de um todo fucking dia.

Ossos do ofício, eu sei. E eles sabem também, mais do que ninguém. Mas fiquei pensando na relação que eu tenho com minhas músicas favoritas: geralmente, ouço até enjoar e não aguentar mais ouvir uma nota delas. Penso nas músicas que a gente deixa de gostar pois elas foram, por algum período, a música do nosso despertador. E aí pensei como seria minha relação com música, em geral, se eu trabalhasse num lugar assim, que todo dia eu ouço só os hits mais recentes e comerciais ou só as mesmas coisas velhas, todas cantadas por amadores – por cima de um tecladinho com bateria eletrônica. Será que eu acharia um saco ou será que eu conseguiria levar na esportiva todos os dias, entrar na brincadeira e me divertir no meu emprego?

Não sei, só sei que “Evidências” eu não canto mais. Coitado dos cara.

Sobre ver um show da Madonna em Paris

Depois de adiar em muitos meses uma viagem que faria pra Paris em abril de 2015, acabei fechando tudo para o começo de dezembro. Na hora de comprar as passagens, fui checar se Madonna estaria por perto com sua atual turnê. Quando pisquei, estava eu lá no que eles chama de “fosso” (o equivalente deles à nossa área VIP), vendo mais uma vez de perto um show dela.

O primeiro que vi foi o “Sticky and Sweet”, do disco “Hard Candy”. Lembro bem do frisson e da comoção – que envolveu muitos problemas para comprar ingresso e uma viagem a São Paulo, pois não morava aqui ainda. A segunda vez foi a “MDNA Tour”, do álbum de mesmo nome. Eu já morava aqui e a experiência foi muito superior: além de estar bem mais perto do palco, estava acompanhado da minha irmã (outra super fã de Madonna) e tínhamos feito um combinado de não ver vídeo e nem ler notícias sobre o show. Assim, praticamente tudo que vimos no palco foi surpresa. O impacto é ainda maior assim.

Com a “Rebel Heart Tour”, as coisas foram apenas um pouco diferentes. Quando tive certeza que iria ao show, a turnê tinha começado fazia bem pouco tempo, então fiz a mesma coisa e evitei ver vídeos. Vi algumas fotos, sabia algumas poucas músicas do setlist, mas nada completo. Queria, de novo, uma experiência inédita. Dessa vez fui com uma das minhas maiores amigas, que conheço desde o colégio.

Lembro que achei que a “MDNA Tour” tinha mais a ver com o greatest hits “Celebration” que com o álbum da época – ela cantava as inéditas da coletânea (“Revolver”, por exemplo) e versões cafonas ou pela metade de “Hung Up” e “Papa Don’t Preach”, que pareciam estar ali só pra constar.

Na nova turnê tem um pouco disse na forma de um medley de “Dress You Up” com trechos de “Into The Groove” e “Lucky Star”, além de “Burning Up” na guitarra. Mas a intenção é boa: são músicas que fazia mesmo muito tempo que ela não cantava. O que não é o caso de “Candy Shop”, que é uma música fraca (o catálogo de Madonna é muito vasto) e está no setlist pela terceira turnê seguida…

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Mas, como o nome diz, essa é a turnê do “Rebel Heart” e isso fica muito claro. Contando com os vídeos interlude, são tocadas 13 músicas do álbum novo. É impossível parar de ouvir o tal disco depois do show, inclusive. Turnês são, afinal, a estratégia de divulgação de Madonna para seus mais recentes lançamentos e o lugar onde ela ganha mais dinheiro atualmente.

Quem conhece os clipes de Madonna sabe como eles são datados: as músicas continuam vibrantes, mas você assiste e é transportado para uma outra época, seja pelo tipo de música feita mesmo, seja pelos cabelos e figurinos. Nas turnês, o mesmo acontece, relembramos as tendências daquela época. Em uma ela pula corda, na próxima faz slackline e nessa tem pole dance, claro – mas ela faz o negócio numa cruz em cima de uma mulher vestida de freira. Estamos falando de Madonna, afinal.

Minha maior crítica às últimas turnês de Madonna eram os últimos blocos: parecia que ela gastava a bala toda no começo e os finais eram meio com o que sobrou. A “Rebel Heart Tour” é uma saborosa exceção. Pelo menos no show de Paris, ela pareceu começar tudo meio desanimada e foi ficando cada vez mais alegre, terminando a apresentação no ápice do ânimo.

peaceAliás, o que falar da apresentação de Paris? Ela falou algumas coisinhas em francês aqui e ali e cantou Edith Piaf (“La Vie En Rose”, claro), mas o momento mais tocante, com certeza, foi ver seu filho David Banda no palco logo depois dela fazer um discurso sobre os artistas franceses que a inspiraram e artistas de outros países que foram para a França em busca de compreensão. O menino, que está agora com 10 anos se não me engano, cantou “Redemption Song” (Bob Marley) no violão com a mamãe Madonna acompanhando no final. Um momento bem bonito que foi seguido pela música que dá título ao disco e ao show, uma balada autobiográfica que comove muito.

dadPontos altos: em “Unapologetic Bitch” ela sempre pega alguém da plateia para dançar com ela no final. No meu show, foi ninguém menos que o estilista Jean Paul Gaultier, que animou a plateia. Vi Madonna tocar “True Blue” ao vivo, que é uma canção fofa com uma letra que eu adoro, e vi “Deeper and Deeper” e “Like A Virgin” em performances maravilhosas, cheias de cor e vida, de um jeito que nunca achei que testemunharia. A performance de “HeartBreakCity” é linda, mas não curto muito a música. Mas como tudo acontece numa escada lá na ponta do palco, é legal de assistir esse momento calmo do show. E fiquei ainda mais contente quando vi que no finalzinho ela puxa alguns trechos de “Love Don’t Live Here Anymore”, uma música “lado B” de 1984 que nunca imaginei ouvir ao vivo – e que me emocionou por ter sido, muitos anos depois de lançada, a trilha de muito chororô da minha adolescência. De todos os vídeos, o da abertura, “Iconic”, é o mais bonito e significativo – mas os malabares dos dançarinos em “Illuminati” me fizeram, literalmente, gritar. Essa é, provavelmente, a turnê mais harmônica da carreira dela. A mais animada segue sendo a “Sticky and Sweet” e a mais bonita segue sendo a “Confessions”, mas creio que “Rebel Heart” agrada gregos e troianos.

Provável único ponto baixo: “Living For Love”, que é uma música que eu genuinamente gosto e acho muito poderosa, fica só na reciclagem de todas as performances que Madonna já fez à exaustão em programas de TV e premiações. Podia ter mudado alguma coisa, ter feito a original e não o remix, deixado pra ser a última do show ou mesmo ter deixado de fora…

Enfim. Se eu quisesse, podia escrever sobre o show para sempre aqui. Eu já esperava um espetáculo por si só, mas o legal foi ver a própria Madonna super animada e assistir tudo num estádio fechado e pequeno, o que torna a experiência completamente diferente. Na impossibilidade financeira de viajar pra fora e ver outro show e na aposta que ela não deve trazer nada disso pro Brasil, me resta esperar os registros oficiais, DVD/Blu-ray, que devem sair apenas no final de 2016.

Falando nisso, essas fotos desse post são de divulgação, eu mesmo fiz poucos registros. Por causa dos atentados do mês anterior, a segurança estava super forte, então não levei câmera, mochila, nem nada disso. Mas fiz alguns vídeos no Snapchat (gabrielkdt) e juntei todos abaixo, só pra dar uma ideia de onde eu estava na plateia mesmo 🙂

Bitch, she’s Madonna!

Por que tem tanto gay na música hoje em dia?

A carreira de muitas artistas, como Lady Gaga e Madonna, é marcada por certa fluidez sexual: em algum momento, no mínimo, elas declararam ter ficado com outras mulheres. Apesar de tudo que elas podem ter feito pelos movimentos LGBT, sempre há quem diga que tudo não passa de um golpe de marketing para ganhar base de fãs.

Mas mesmo que tudo isso seja um golpe de marketing, o que esse golpe sinaliza? Que os gays estão de ouvidos em pé, atentos a quem dá valor a eles.

E, de uns tempos pra cá, você pode ter reparado que o número de artistas homens declaradamente gays aumentou bastante no mundo musical. Se no passado o que mais existia eram cantores no armário (como Ricky Martin ou Lance Bass), hoje ser gay e cantor não é um problema (Sam Smith e Troye Sivan são bons exemplos) e tem até heteros cantando contra bullying homofóbico. Você não é mais considerado de vanguarda e nem precisa ser eclético, clichê ou extravagante (para os padrões heteronormativos, digo), como eram Elton John, Ney Matogrosso e até David Bowie.

O que aconteceu nesse meio tempo?

casaisgaysBom, muita coisa. A comunidade como um todo tem sido representada nos pacotes midiáticos cada vez mais – e eles ajudam muito a desmistificar as coisas para as massas. Da primeira sitcom da Ellen DeGeneres até “Looking”, “Orange Is The New Black” ou “Sense8”, passamos por “Will & Grace”, “Queer as Folk”, “The L Word”, “Glee”, “Modern Family”, sem contar a naturalidade em que personagens gays eram apresentados em “Sex And The City”, “Friends” ou até “Buffy”, “The Nanny”, “Os Normais”, “Dawnson’s Creek” e em várias novelas (algumas com beijo, outras sem). Isso sem mencionar “RuPaul’s Drag Race”, né?

Paralelo a isso, a opinião pública sobre orientação sexual tem mudado aos poucos. Novas gerações tendem a ser mais tolerantes, pois são expostas a mais pontos de vista que as gerações anteriores – mesmo as crianças criadas por pais bem tradicionais têm acesso mais fácil hoje a todo tipo de informações. Uma pesquisa da YouGov feita no Reino Unido mostra que 1 em cada 2 jovens entre 18 e 24 anos não se considera heterossexual – eles criaram uma escala de zero (exclusivamente hetero) a 6 (exclusivamente gay) e as respostas das pessoas sambaram muito entre os números. Pois é, podemos estar começando a ver o fim dos rótulos, finalmente.

Reacionários e cristãos fervorosamente tradicionais costumam dizer que hoje em dia existem mais gays no mundo pois nossa sociedade está aceitando “essa doença”, mas creio que é justamente o contrário: na medida que desmistificamos a homossexualidade como algo errado ou do capeta, criamos um ambiente em que torna-se mais confortável ser quem você é de verdade e aí param-se os fingimentos. É impossível medir, mas é capaz que o número de pessoas que se identificam como gays, lésbicas ou trans hoje em dia seja o mesmíssimo de, sei lá, 1890 – mas hoje as pessoas têm mais liberdade de ser quem elas são.

De liberdade em liberdade, não é mais estranho ver casais gays por aí. O casamento entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado em todos os estados americanos em junho de 2015, por exemplo. No Brasil, a união já é reconhecida desde 2013. E o número de famílias LGBT (com ou sem filhos) e de pessoas que se declaram “não-hetero” só aumenta estatisticamente no mundo. Isso, sozinho, já responderia “matematicamente” o título do texto: temos mais gays livres no mundo, logo temos mais gays na música. Talvez.

Mudando de assunto um minuto

Dia desses, a marca de laticínios Itambé publicou em seu Facebook essa imagem abaixo.

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Post no Facebook da Itambé

As pessoas repararam que, ao contrário da esmagadora maioria de imagens da publicidade do segmento, a família retratada é negra. A aceitação da imagem não podia ter sido melhor: só elogios na página. Há uma menina negra que, nos comentário do post, usa a seguinte frase: “Quando não me vejo na publicidade, não compro o produto“. Ela está coberta de razão: se em nosso país 53% da população se declara negra ou parda (segundo dados da Pnad de 2013), não faz sentido ter uma família branca e loira nas propagandas.

De volta ao mundo musical gay

Uma pesquisa Nielsen mostra que as famílias gays gastam mais dinheiro que as famílias tradicionais – especialmente em compras online e livrarias. Quando a pesquisa aponta os hábitos de consumo das famílias LGBT sobre música, a diferença fica ainda maior. Em todos os segmentos de venda, gasta-se mais.

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E o que será que esses gays estão consumindo? Provavelmente não são rappers que falam sobre mulheres e carros importados. Estamos numa fase parecida com esse caso do post da Itambé, ilustrado ali. Lembra da moça que disse que não compra o produto se não se sente representada na propaganda? Pois é. O que gays querem ouvir? Eles já passaram tempo demais ouvindo músicas sobre sensações e experiências que não lhes dizem muito respeito. E se tem demanda, meu amigo, a indústria fonográfica vai dar seu jeito de suprir – para lucrar, é claro.

Isso não torna todos os artistas gays marionetes nas mãos de executivos, apenas indica que eles estavam no lugar certo na hora certa. E a mudança no relacionamento que as pessoas têm com música atualmente também tem a ver com isso. Hoje, é bem mais fácil produzir um disco e ainda mais fácil fazer com que ele chegue aos ouvidos de qualquer pessoa do mundo. Você precisa de cada vez  menos intermediários, algo que era complicado de acontecer se você queria ser artista no mundo tradicional dos CDs e paradas de sucesso – com medo do preconceito, era quase impossível que uma gravadora despejasse dinheiro em cima de um artista declaradamente homossexual que tratasse do assunto em suas músicas – perceba que artistas gays do passado falavam bem pouco do assunto em suas canções. Essa facilidade de distribuição casou bem com a demanda gay por músicas que os representasse e com um público que liga cada vez menos se o artista que ele curte é ou não homossexual.

É bem provável, por exemplo, que Adam Lambert não fosse ter uma carreira do tamanho da dele se tivesse se lançado no final dos anos 1990. Já hoje, há toda uma nova geração que se identifica com o que ele tem pra dizer, tem sede de ouvir o que ele tem pra cantar e consegue se conectar com ele muito mais diretamente. E é por isso, também, que ao invés de um disco acústico de baladas, Madonna ainda está fazendo clipes pegando homens e mulheres na pista de dança: ela alcança muito mais gente assim – não por coincidência, o tal clipe é o com mais visualizações em sua conta oficial no YouTube.

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Sam Smith e Olly Alexander

Ainda há na música quem fuja de declarações taxativas (Mika, essa é pra você), mas Miley Cyrus adora falar de sua fluidez sexual (“nem hétero, nem lésbica”) em entrevistas; a Banda Uó tem uma vocalista trans; Shamir já disse ser assexuado e não pertencer a nenhum gênero; e Olly Alexander, vocalista do Years & Years, faz questão de falar que suas músicas foram baseadas nos seus ex-namorados e usa adjetivos no masculino em suas letras.

A orientação sexual dos artistas nunca esteve num momento como o atual, em que ela importa e não importa exatamente nas mesmas proporções – para o público e para os selos.

But who runs the world? Gays. Ninguém entende melhor que eles todas essas fases de auto-descoberta que esses artistas todos estão passando e, pelo visto, ninguém gasta mais dinheiro com música que eles. Em resumo, uma combinação per-fei-ta para o mercado.

O quê que tem a margarina?

Estava apresentando alguns sucessos imbatíveis da música brasileira para um norte-americano. Fui dos clássicos, como Djavan e Tribalistas, aos ainda mais clássicos, como Molejo e Furacão 2000. No meio da bagunça musical toda, rolou um “Panis et Circenses” e achei legal ouvi-lo dizer: “Essa eu já conhecia!”

E aí ficamos lá ouvindo aqueles versos incríveis – “chega à choupana o campônio” -, e chegamos à “Baby”, uma letra que me deixava curioso desde a primeiríssima vez que ouvi.

Por que diabos eu preciso tomar sorvete na lanchonete? Mas, principalmente, o que eu preciso saber da margarina? Pensava: será que eles queriam falar “da cocaína” mas mudaram por causa da censura? Essa margarina me perseguia.

Aí achei o artigo “Os mutantes antropófagos” (de Rodrigo de Böer Trujillo) com a explicação abaixo e me contentei.

(…)

O verbo precisar, jargão do mundo consumista, é o que rege todo o desenvolvimento da letra da canção, formada por três estrofes, semelhantes em sua construção, que se resolvem sempre em refrãos com o mesmo modelo, mas com letras distintas. Todas as estrofes iniciam com a mesma frase: “Você precisa”, a partir da qual se desenrola a lista. Na primeira estrofe são citados objetos relativos à esfera essencial da economia, como a margarina, um alimento básico, e a gasolina, que rege muito das finanças do país – além de alimentar os desejados calhambeques dos mauricinhos paulistas -, e objetos do universo bon vivant dos jovens, como a canção “Carolina” de Chico Buarque, que fez um enorme sucesso na época, e as piscinas, construção recorrente em residências burguesas que denotam status e acabavam sendo o principal local a se realizarem as festas e comemorações.

Na segunda estrofe são citadas necessidades como o cumprimento do modismo de tomar sorvete nas lanchonetes, um modelo de comércio de refeições ligeiras importado dos Estados Unidos feito para ser o principal ponto de encontro de jovens, e ouvir canções de Roberto Carlos, líder do movimento da Jovem Guarda, que era o reprodutor por excelência dos modelos musicais importados em sua época.

Já a terceira estrofe tem uma quantidade um pouco maior de versos e uma dinâmica mais variada, tematizando principalmente a nova era de cultura de massas e expansão das comunicações, inclusive fazendo menção à necessidade do aprendizado da língua inglesa

(…)

Ok.

Ela não é a Beyoncé

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Se apenas bibliotecários e médicos super sérios fossem fãs de boybands tipo One Direction, você acharia a banda mais relevante? Acho que não. Mas, de alguma forma, sinto que a quantidade de fãs pré-adolescentes faz com que Kate Nash seja levada menos a sério, como se fosse uma cantorazinha para estampar pôster em armário e inspirar looks. Mas ela não é. Ou é bem mais que isso.

Na plateia de seu show aqui em São Paulo, que rolou dia 23 de junho, tinha bastante dessas meninas. Mas tinha também bastante gente mais velha e, digamos, normal. E foi um alívio ver isso, muita pessoas lá para ouvi-la – e se engana quem acha que o público era “sobra” do show (maravilhoso) do Magic Numbers – e muito menos do Bonde do Rolê, que fez uma apresentação tão vergonhosa que não quero nem gastar meu tempo descrevendo.

Abaixo, o show de Kate na íntegra (começa no minuto 28:39)

Ela atrasou 30 minutinhos e logo de cara uma bela surpresa: a introdução do show é um vídeo de Kate cantando “You Don’t Own Me”, de Lesley Gore, música de 1964. Aqui tem um texto só sobre o que ela significa pra mim e pro mundo.

A primeira música no palco foi “Sister”, do mais recente disco, “Girl Talk”. É uma balada pesadinha sobre o fim de um relacionamento. Particularmente, prefiro o lado “gritos desafinados” dela ao lado “canto cochichando”, então amo essa e era uma das que eu mais esperava. Dá muita vontade de gritar junto e a plateia gritou mesmo. Ela, que já entrou com a bandeira do Brasil nas costas, agradece em português e logo depois diz estar muito feliz de voltar a São Paulo. A seguinte é “Death Proof”, também do novo disco, uma das letras mais legais: “eu não tenho tempo para a sua crueldade, eu não tenho tempo para morrer”, diz.

Aí chega “Take Me To A Higher Plane”, uma das minhas favoritas, essa letra significa muito, muito pra mim e foi ótimo ouvir ao vivo e cantar junto. “Everyone I fucking hate is in this room!”, ela grita nessa. E quem nunca passou por isso, né? Tinha gente passando por isso na própria plateia.

Cronologicamente, Kate foi indo de fofinha a roqueirazinha. “Kiss That Grrrl” é da primeira fase, mas ganhou uma versão mais potente aqui. Idem com “Mariella”, que leva a cantora a interagir com o público pela primeira de muitas vezes: ela desce do palco e canta no meio das meninas da primeira fila, para desespero dos seguranças, mas a produção encoraja e já troca o microfone dela por um sem fio. Mal sabiam eles o que ela iria aprontar.

“I love you Brazil! I feel shy, cause I love you so much”, diz antes de começar “Do-Wah-Doo” e ir para o meio da galera. Ela vai de um lado pro outro na frente do palco e até o fim da passarela que divide o público.

“A próxima música eu escrevi na praia. Estava tudo ótimo e lindo. Mas sabe quando você acha que estar no meio de um cenário perfeito vai melhorar seus problemas? Tudo ao redor é tipo uma porra de um Monet e você fica ‘oh não, meus problemas ainda estão aqui'”, revela (também explicando o visual do clipe) antes de cantar uma das baladas aceleradas do novo disco, “OMYGOD!”. Ela desce pro público de novo, sempre parando e cantando junto com as pessoas, aceitando high-fives e longos abraços. Até que você ouve ela dar um grito e descobre mais tarde o motivo: ela achou um cara que tem o rosto dela tatuado no braço. Kate cata o menino e leva pra dançar com ela no palco (minuto 58:10). Depois de muitos pulos, ela vai tomar fôlego e solta: “Eu não sou a Beyoncé”.

E que bom. Kate Nash é sempre comparada a Regina Spektor e Lily Allen, mas cada vez prova que não é bem por aí: ela não quer chegar perto do lado musical clássico da primeira e é uma letrista infinitamente superior à segunda. É um alívio para os ouvidos presenciar um show de alguém comprometido com a música e um alívio para os olhos ver que é possível, em 2013, impressionar uma plateia grande com um show que não requer telões e dançarinos.

Depois de falar da tatuagem do cara, os rodies vão tirar o tal fã do palco e a cantora não deixa, diz que ele pode assistir o resto do show ali do palco mesmo. Beijos. O restante do show segue muito bem com “Paris”, “Dickhead”, “3AM” e uma versão incrível de “Foundations” (minuto 1:23:50).

Mas é com “Fri-end?” que eu fico balançado pela primeira vez. “Essa música é sobre aquele tipo de pessoa, sabe? Que seus amigos dizem pra você que é uma babaca e você sempre defende dizendo ‘não, ela é assim mesmo’, até o dia que você acorda”. E, olha, conheço bem esse tipo de pessoa, então foi uma delícia ouvir e gritar. Eu ria e chorava ao mesmo tempo.

O que não posso dizer sobre “Don’t You Want To Share The Guilt?”, que eu só chorei. Eu não sabia que ela costumava cantar essa ao vivo – ela é longa, meio lenta e não tem refão. Mas que bom que ela canta, pois a história da letra é tão real que seria um desperdício. A situação narrada é tão pessoal e relacionável que me faz, sem querer, ter flashbacks não-tão-bons.

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A melancolia foi interrompida pela explicação de Kate de incluir um cover da banda Fidlar no seu set: no ápice de sua inocência adolescente, ela ouvia o refrão de “Cocaine” e achava que o vocalista cantava “girl gang”. Então decidiu fazer uma versão assim. Fofa!

A última é “Under-Estimate The Girl”, a primeira que ela lançou do disco novo. Ela escreveu, gravou e fez o vídeo em 24h. Foi o comecinho da frase gritaria dela. Agora, além do mocinho tatuado, estão do seu lado cerca de 30 meninas. Só consigo imaginar a felicidade delas. As guitarras não param enquanto Kate pula e tira foto com a câmera de uma fã.

Ela deixa o lugar prometendo voltar mais vezes ao país. A gente acredita e torce. Se for pra ser sempre essa delícia, podia ter show dela todo mês.

No bis (que não incluíram na transmissão), ela faz uma versão acústica de “We Get On” e “Birds”, que é um final perfeito, com sua historinha e pelo fato de ser seu primeiríssimo single. E não há palavra melhor pra finalizar esse show do que “cool”.

PS: Achei esse outro vídeo do show aqui. Está sem a intro, mas a qualidade é melhor e tem o bis!

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Madonna ainda chuta bundas

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Toda vez que vou em algum show juro pra mim mesmo que ele será o último. É muito perrengue: o lugar é longe, é muita gente junta, disputa de lugares, falta de educação, filas, cambistas na porta, vendedores de água atrapalhando sua visão. Mas aí anunciam que Madonna vai vir – e não dá pra ignorar.

O show é muito bonito e meio confuso ao mesmo tempo. Mais uma vez ela capricha demais nos primeiros dois blocos do show e deixa os dois últimos meio largados. Mas é tudo muito legal e divertido! A impressão, na verdade, é de estarmos vendo um show de greatest hits. Mesmo que ela não cante certos sucessos passados por inteiro, sempre há alguma citação pra te cutucar.

Por exemplo: “Girl Gone Wild” cita de leve “Material Girl”, em “Candy Shop” ela solta umas frases de “Erotica” e no fim mistura “Celebration” com “Give it 2 Me”. Além disso, canta “Like A Prayer”, “Express Yourself”, “Papa Don’t Preach” e “Open Your Heart” numa versão absurdamente bonita.

Enfim, eu adoro essa mulher e tudo que ela representa, todo o conceito de seja você mesmo, se dê valor, seja dono do seu talento, do seu corpo e da sua mente – sim, pois são essas as mensagens nesses 30 anos de carreira. Não sou fanático otário de achar que tudo que ela faz é impecável, mas também não sou desses que acha que chamá-la de “velha” e “tia” é um apelido carinhoso. Aliás, pelo contrário, e é sobre isso que queria escrever – não apenas sobre o show em si.

Entre os fãs de Madonna tem gente de tudo quanto é jeito. Mas as plateias não são feitas apenas por fãs e os comentários que ouvi ao meu redor durante o show foram bem bobos. A maior parte, claro, falando que “ela está velha demais pra fazer isso”.

Aí lembro que não estamos na presença de uma qualquer – e sim de Madonna.

Ela pode até perder quando disputa com Rihannas e Lady Gagas os pedidos feitos para os DJs nas boates e os votos das paradas adolescentes da MTV. Mas creio que ainda ganha no lado artístico que existe na música pop: uma das provas mais recentes é seu álbum “MDNA” que, entre uma música chiclete e outra, tem letras bem pesadas e pessoais – a maioria sobre seu divórcio do cineasta inglês Guy Ritchie.

Só acha que ela está velha demais pra fazer isso ou aquilo quem não entendeu esses recados que ela tenta passar desde o começo da carreira. Tudo bem, Madonna parece ter caído na armadilha que ela mesma criou. Precisa fazer turnê mundial, tanta dança, tanto telão? Talvez não, mas é isso que esperam dela, a mulher que inventou e aprimorou tudo isso. Mas ela mesma já disse, anos atrás, quando foi comparada à Britney Spears: “é preciso muito mais do que apenas tirar a roupa pra ser como eu”.

Madonna é pop, mas tem algo sério, relevante e verdadeiro a dizer, algo que não existe em profusão hoje em dia – é só ligar no VH1 em qualquer tarde de domingo pra comprovar.

E não vou nem entrar na discussão profundamente, mas vale lembrar: grande parte dos fãs é gay e uma boa fatia dessa comunidade é superficial, age como se não fosse envelhecer e tem como combustível tudo que é novo, não importando muito o conteúdo dessa coisa nova. Daí fica complicado mesmo.

Ah, mas e o show? O show é ótimo! Quero que saia o DVD logo pra eu poder rever várias vezes – e com a vantagem de não precisar lidar com essa galerinha chata do meu lado. (:

Toda unanimidade é burra

No meio desse ano eu assisti o documentário “Daquele Momento em Diante”, que fala sobre a trajetória musical de Itamar Assumpção, da Vanguarda Paulista na década de 1980. Ele foi músico, compositor e cantor, gravou vários discos e, teoricamente, nunca fez sucesso no Brasil naquela época. Era “alternativo demais”.

Em um vídeo, ele falava sobre a facilidade de fazer um show e ser bem recebido (e, digamos, compreendido) na Alemanha. “No Brasil é tudo uma dificuldade”, ele compara. Aí suspira e diz assim: “Até quando esse país vai viver de Chico e Caetano?”.

Na semana passada, Chico Buarque esteve na minha cidade, Belo Horizonte, e um dos jornais mais lidos daqui, o Estado de Minas, colocou o músico na capa. As manchetes eram títulos de músicas etc etc. De uma breguiça fenomenal. Uma coisa que chamou atenção foi uma linha que dizia assim: “Chico Buarque é unanimidade”.

Se fosse numa sala de aula, era hora de levantar a mão e citar uma frase de Nelson Rodrigues pra professora: “Toda unanimidade é burra”.

Eu entendo o fascínio das pessoas por Chico, mas acho que a hora dele passou. O mundo mudou e ele ficou parado. Direito dele. Mas é que gostar das músicas dele parece uma coisa obrigatória aqui nesse país. Mas, convenhamos, ele perdeu a mão nas composições – e tem lá mais que uma década. Não era muito mais legal quando ele era censurado e suas letras eram um desafio? Agora tanto faz.

Mas tudo bem, cada um tem o ídolo que merece. Se vocês acham que um velhaco amarelado continua sendo sexy e bom cantor, que bom pra vocês. E pra ele, claro.

O que me deixa chateado é essa babação de ovo excessiva. Pois isso cerca o cara de uma manta que ele não devia ter mais – não estou falando que ele devia ser desrespeitado, nada disso. Mas li que ele mesmo ficou abalado quando descobriu, há alguns anos, que tinham comunidades “Eu odeio Chico Buarque” no Orkut. Provavelmente ele também acreditava nessa unanimidade. Talvez seja hora dos fãs pegarem leve, serem mais críticos. Não tem música boa e nova do Chico há vários anos, admitam.

Sei lá. Ultimamente tenho concordado mais com Nelson Rodrigues do que com Angélicas, Renatas Marias, Ninas e Lolas. Fãs, em geral, são pessoas chatas, que não gostam de ser contrariadas. Fãs de MPB então, sai de baixo. Li um texto que os compara com religiosos fervorosos: se você não acredita no deus deles, está condenado.

A declaração do humorista Marcelo Madureira, que chamou o cineasta Glauber Rocha de “uma merda”, também “sacudiu o Rio de Janeiro”. Suspiro. Está vendo? O problema é essa suposta unanimidade. Se muita gente acha, você tem que achar também?

Detalhe: dia 31 de outubro, alguns dias antes do show de Chico em BH, foi o centenário de Carlos Drummond de Andrade, um dos escritores mais respeitados do país, e mineiro. Adivinha se ele foi capa do Estado de Minas…

Roqueiros de verdade não reclamam

Flashrock: O evento promovido pela Converse reuniu um monte de bandas muito boas (e outras nem tão boas, mas tá valendo) no Lapa Multshow, em Belo Horizonte. O negócio era no Dia do Rock, numa terça, e totalmente de graça. Obviamente, a procura é grande e chegar cedo é pré-requisito para se divertir. Quem não fez isso ficou de fora. Muito, muito ruim, mas não vale reclamar. Você realmente achou que um evento desses – de graça – ia ser vazio, tranquilo, seco, rápido? Quer isso, paga 200 reais em showzinho no Palácio das Artes, espertão. Todo mundo pegando boi e ainda fica de mimimi. Organização e segurança é uma coisa, o som das bandas é outra. E, todos sabemos, um não tem a ver com o outro.
Discutir rock: Pode ser igual discutir religião, livros favoritos, ídolos de longa data. Uma coisa é falar que “o som de tal banda é pesado demais e não me agrada”, outra coisa é falar que “a banda é baranga e que qualquer um faz um som melhor.” Essa segunda afirmação é uma polêmica gratuita e, na realidade, uma ofensa. Discutir assim, na verdade, não é discutir. É xingar, simplesmente. Nenhuma música é, de fato, boa ou ruim, pois adjetivos são subjetivos. Músicas te agradam ou não. É muito chato esse povo que adora uma discussão, contanto que ele tenha razão no final. Gente, pode saber, a banda que você mais odeia do fundo do coração tem muitos fãs. Então vamos todo mundo ficar de boa?

SWU: Puta que pariu, esses ingressos são muito baratos, parem de falar o contrário. Estamos em um país pobre, eu sei, mas é só refletir para concluir a mesma coisa. São bandas gringas que vieram de muito, muito longe tocar aqui. Ok, um festival grande, nos Estados Unidos, tem ingressos que custam o equivalente à 80, 90 reais. Mas ó, a meia-entrada do SWU é 120 reais. A diferença é que as bandas não moram aqui e os organizadores pagam aviões, vistos, transportes e hotéis para os membros, empresários, familiares e instrumentos deles. Além do cachê, claro. Viajar pra lá pode ser complicado, para muitos já que o show é em Itu, mas o ingresso sai em 6x no cartão e os shows só rolam lá pra outubro! Yeah!

Post assim, do meio do nada, mas eu fico vendo essas coisas ao redor e me revolto com a falta de noção da galera, com a mente pequena e falta de respeito das pessoas mesmo. E o espírito reclamão do brasileiro? Tô fora.

Passou, passou

Estava fazendo uma seleção de músicas que seriam interessantes de tocar em uma festa sobre a década de 1990. Havia muita coisa boa, muita coisa ruim e muita coisa boa-ruim na caixa de som. Nenhuma festa em que o setlist é restrito a algum período de tempo só pode ter música boa. Quando as músicas ruins de um certo tempo tocam, não são para serem apreciadas como composições. São para te trasportarem para um outro tempo, para você ouvir e ter a sensação de estar de novo em algum outro lugar, ouvindo aquela música e fazendo uma outra coisa – beijando alguém que já passou, por exemplo.

Mas o mais curioso foi que minha irmã, agora com 16 anos, passou perto e, sem saber o que eu estava fazendo, disse:

– Por que vocês está ouvindo isso? Essa música é tão velha!

Eu fiquei em silêncio, me perguntando como uma canção de 1999 pode ser considerada velha por ela, que ouve Marvin Gaye e que, recentemente, descobriu os hits oitentistas de Madonna e os sucessos de David Bowie?

Então me ocorreu. Ela ainda não é madura o suficiente para entender, de fato, uma festa de flashback. Mas já sabe, quase instintivamente, que músicas ruins passam e que só as realmente boas merecem ser ouvidas depois de seu tempo.