Eu vi as suas fotos pelado no celular dele

– Então é você?!

Ela gritou com uma voz rouca, fazendo um pequeno escândalo na porta do prédio, em direção a ele.

– Eu o quê?

Ele respondeu assustado, com uma certa dúvida se aquela mulher estava falando mesmo com ele. Dava para ver, pelos olhos esbugalhados e fixos nele, que ela estava com seu estado emocional abalado.

– O cara que chupa o pau do Jorge!

Ela gritou alto de novo, agora já chamando atenção das pessoas passando na rua e o deixando extremamente desconfortável, imóvel no caminho que tranquilamente estava fazendo para dentro do prédio em que morava.

– Jorge?

Disse baixo, tentando lembrar de quem se tratava. Ainda não tinha certeza se aquela gritaria era com ele mesmo. Mas ela o ouviu cochichando o nome que tinha dito, então repetiu mais alto, esclarecendo:

– Jorge, o meu marido! Eu li as mensagens que vocês trocaram no celular!

– Ah – ele disse com calma -, um moreno?

– É – ela disse ainda gritando, como se não acreditasse que ele não se recordava quem era -, eu vi as suas fotos pelado no celular dele, seu ridículo!

– Ok, calma, querida.

Ele lembrou do Jorge: um cara que ele conversou em um aplicativo de pegação no final de semana. Eles trocaram algumas fotos mesmo, mas apenas as fotos que ele já tinha dentro do próprio aplicativo, as mesmas que ele mandava pra todo mundo que conversava: uma de rosto, a mesma que usava no perfil do Facebook, uma foto dele em uma festa, e duas fotos dele só de sunga, tiradas numa viagem à praia.

Eles conversaram na madrugada de sexta para sábado da semana passada e combinaram de encontrar para fazer sexo casual. E foi isso que fizeram. Não foi impessoal, mas também não foi especialmente íntimo. Aquele sexo entre dois estranhos com tesão um no corpo do outro, para aliviar a tensão da semana de trabalho. Os dois se chuparam mesmo, os dois transaram sim, os dois gozaram.

Durante esses curtos segundos, ele percebeu a confusão que tinha entrado: Jorge claramente não tinha essa parte da sua sexualidade aberta dentro de casa. Entretanto, era claro que não era novato na coisa: o sexo foi bom e eficiente, ele se preocupou em usar camisinha e tinha até trazido poppers no bolso.

Depois, Jorge foi ao banheiro urinar, vestiu de volta sua roupa e foi embora, logo depois de dar um último gole no copo d’água que tinha pedido assim que chegou no apartamento.

Ontem, ele mandou uma nova mensagem pro Jorge, um simples “oi, quer repetir qualquer dia desses?” e Jorge não respondeu, apesar de estar online na hora. Provavelmente não era ele online, e sim essa mulher, lendo todas as mensagens que foram trocadas – em uma delas, tinha o endereço dele, provavelmente foi assim que ela tinha chegado ali, em sua porta.

– Vem cá – ele disse calmo para ela, abrindo a porta do prédio, já entreaberta, e apontando para os bancos que ficavam na entrada de seu condomínio – senta aqui.

Ela se sentou, ainda exaltada, falando mais baixo, mas ainda de forma aparentemente desorientada:

– Eu num quero nem saber o que…

Ele a interrompe:

– Olha pra mim. Olha pra mim.

Ele estava calmo e ela começou a ficar também. Olhou pra ele inteiro. Suas pernas dobradas com calças jeans, a canela aparecendo e seu sapatênis azul marinho. Sua blusa listrada de mangas longas e seus dedos finos e limpos apoiados nos própios joelhos.

– Se eu soubesse que ele era casado, você acha que eu teria feito isso? Eu não sabia que ele era casado…

Ela falou algo por cima dele, mas ele continuou falando.

– Eu tô com o Jorge tem [inaudível] anos!

– …Mas você sabe quem sabia que ele era casado, né?

Os dois ficaram em silêncio durante o que pareceu uma eternidade. Ela sabia o que ele ia dizer:

– Ele. Ele sabia.

Ela continuou com a mesma cara de exaltada, de quem está prestes a abrir um berreiro, mas ficou em silêncio, e sua respiração estava finalmente normalizando.

– Então, assim: eu vou deixar você falar tudo que você quiser falar comigo, mas antes eu queria te dizer apenas isso. Ele sabia que ele era casado. O que eu fiz não foi uma falta de respeito com você, intencionalmente. Mas o que ele fez é que foi. E alguém assim merece isso?

Os dois ficaram em silêncio. Ela estava sem palavras, então ele continuou:

– Ele merece você aqui, exaltada, tirando satisfação comigo? Eu não tenho nada a ver com essa história. O que ele fez comigo, podia ter feito com qualquer outro cara, qualquer outra mulher, talvez até tenha feito antes. O que importa é o que isso significa pra vocês, o que ele fez com você, tendo feito isso comigo. Entende? Eu não te conheço, e pra ser sincero, eu não conheço ele também, então não tô no lugar de dar conselho algum aqui. Mas se eu fosse você, ia lá falar com ele.

Ela colocou as duas mãos no rosto, como se fosse chorar e não quisesse que ninguém visse. Suspirou alto e resmungou de debaixo das próprias mãos.

– Falar o quê?

– Não sei… Sinceramente, não sei. Não sei se ele é gay e finge que é hétero ou se ele é um hétero que gosta de aventuras… Mas conversando comigo você não vai saber. É só conversando com ele que você vai entender como ele pensa, o que ele gosta, o motivo de ele esconder isso de você, e aí decidir se vale à pena, sabe? E decidir o que vale à pena, tipo, que concessões vocês estão dispostos a fazer um pelo outro… Sei lá. Não sei mais o que estou dizendo. Desculpa.

– Desculpa.

Ele sorriu pra ela, sem mostrar os dentes, que respondeu pra ele:

– Jorge é um filho da puta.

Ele seguia sorrindo de leve.

Eles trocaram um leve e impessoal abraço, de cumplicidade ou empatia.

Ela foi embora.

O perfil de Jorge sumiu do aplicativo.

Eu não nasci gay

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Capa de “Born This Way”,

“I was born this way” [eu nasci desse jeito], cantamos ouvindo a música da Lady Gaga. Mas será mesmo? A trancos e barrancos, a luta LGBT conquista cada vez uma coisinha mais aqui e ali. Mas houve um tempo, bem lá atrás, que a gente já tinha tudo que queríamos. O que estamos fazendo é, simplesmente, reconquistando tudo que nos foi tomado. E quem tirou esses direitos da gente? Como recuperar? O que a ciência diz sobre sermos ou não gays desde que nascemos? Aliás, é tão necessário assim falarmos de ciência? Tudo isso e muito mais no textão abaixo.

Enxergando a homossexualidade com óculos sujos

Muitas vezes não temos noção que enxergamos o mundo por trás de óculos enormes: com os valores do nosso tempo, da nossa família e da nossa profissão; com o que nos foi ensinado e com a cultura ao nosso redor. Falhamos em enxergar que o mundo foi e é muito diferente dependendo da época e do lugar em que escolhemos fazer nossa análise. Religiões, crenças, ideias, valores e costumes nasceram, se firmaram, dominaram o mundo, acabaram por completo e você não viu e nem ficou sabendo. A homossexualidade é um exemplo.

Ela foi uma força conservadora na Grécia clássica (século 5 a.C.), por exemplo. As relações afetivas eram muito mais entre homens, com mulheres apenas na hora de ter filhos. Em algumas cidades, era uma prática simplesmente necessária dos rituais de passagem da juventude. Sua repressão só foi começar nos séculos 12 e 13 e a discriminação veio junto do avanço das religiões até que, no século 19, psiquiatras concluíram que ser gay era um transtorno mental causado por equívocos na criação da criança – e essa ideia reinou na maior parte do século 20. Essa noção se solidificou com as religiões e a ideia de que sexo era pecado se não fosse em matrimônio e para fins reprodutivos.

Do lado de cá, nós, homossexuais, fizemos de tudo para que essa teoria fosse desacreditada. Se o que somos é uma doença, significa que vão tentar nos curar. E tentaram, tentaram muito.

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Protesto em 1965, EUA

Juntamente com esse título de doença veio muito mais preconceito, discriminação e violência, mesmo que o flower power dos anos 1960 tenha ajudado a quebrar alguns tabus: junto aos movimentos de libertação do corpo e da busca pelo prazer, surgiram os anticoncepcionais, e isso possibilitou aos homossexuais sair um pouquinho da clandestinidade. Afinal, a dissociação entre o ato sexual e a reprodução tornavam as práticas homo e hétero um pouco mais próximas.

Mas não foi o suficiente: na época, homossexualidade era ilegal em muitos países (hoje ainda é, em vários) e terapias de “cura” eram coisas comuns em comunidades conservadoras e religiosas. Famílias e mais famílias botavam seus filhos com “tendências homossexuais” em um caminho de tratamentos que, na verdade, eram torturas psicológicas que não os tornavam héteros e lhes causavam mais dor, sofrimento e vergonha, além de ferir para sempre a possibilidade de uma relação saudável deste indivíduo com a própria família.

A ciência ajuda a clarear as coisas

Foi só depois de ver o absoluto fracasso dessas terapias de “cura”, em 1973, que a Associação Psiquiátrica Americana tirou de sua lista de distúrbios mentais a atração sexual por pessoas do mesmo sexo. Foi aí que o termo mudou: “homossexualismo” deixou oficialmente de ser usada para ser substituída pela palavra homossexualidade – o sufixo “ismo” quer dizer doença nesse contexto (como em bruxismo e alcoolismo), então essa palavra hoje não deve mais ser usada. Já da lista da Organização Mundial de Saúde, o termo só saiu em maio de 1990, cerca de 17 anos depois.

A essa altura, os cientistas já consideravam ser gay uma variação absolutamente natural do comportamento humano. Mas o preconceito conosco seguia firme e forte: conservadores, especialmente os religiosos, insistiam em nos enxergar como uma aberração, pois são pessoas que – entre outras coisas – pautam sua visão de mundo com uma régua que não faz mais sentido. Para usar a mesma metáfora do primeiro parágrafo, eles querem enxergar o mundo atual usando óculos muito antigos, marcados por épocas que não são o “agora” e por lugares que não são o “aqui”. Aí não funciona bem mesmo.

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Versão atual de seis cores da bandeira LGBT, desde 1979. A original foi criada por Gilbert Baker em 1978.

Infelizmente, muitas das pessoas mais preconceituosas são também as mais poderosas e o avanço de direitos civis básicos para a comunidade LGBT parece andar a passos de formiga, já que se baseia em conceitos pessoais e de criação, e não em políticas públicas de igualdade diante das leis.

Então, o que fazer? Essas pessoas estão presas aos seus valores de berço (que são pessoais, e não universais), aos livros religiosos escritos há milhares de anos e cheios de falhas históricas e de lógica; estão, afinal, presas a seus óculos velhos, que não funcionam mais. Então o que precisamos é de um argumento único, incontestável e irreversível para a nossa aceitação. Vamos apelar para a ciência.

A primeira vez foi em 1991: o neurocientista Simon LeVay encontrou diferenças em cérebros de homens gays e héteros. Ele examinou o hipotálamo, que é zona-chave da sexualidade no cérebro, e descobriu que a região chamada INAH-3 era entre 2 e 3 vezes menor nos gays. Foi a primeira indicação da origem biológica da homossexualidade, mas o estudo tinha limitações: não dava para saber se essa diferença era a causa ou a consequência da homossexualidade e, além disso, os gays do estudo de LeVay haviam morrido em decorrência da AIDS – e talvez a doença fosse a responsável pela diferença.

Em 1993 foi a vez de Dean Hamer, do Instituto Nacional do Câncer, nos EUA. O pesquisador percebeu que dentro das famílias havia muito mais gays do lado materno. Usando um scanner, Hamer viu que uma região do cromossomo X, a Xq28, era idêntica em muitos irmãos gays (mulheres têm dois cromossomos X, enquanto os homens têm um X e um Y). O que ele descobriu não foi um único gene gay, mas uma tira de DNA transmitida por inteiro. Mesmo contestada por outros estudos, a conexão entre genes e orientação sexual sugere que as pessoas não escolhem ser homossexuais, mas nascem assim.

Estes dois estudos foram suficientes para que comunidade gay começasse a ver na ciência a resposta contra a ideia de que o nosso comportamento é “antinatural”. O problema é que elas não resolveram o preconceito: muito religiosos desacreditam na ciência (paradoxal, mas é verdade) e, de forma geral, ainda acredita-se muito que a formação da identidade sexual tem a ver com a cultura ao seu redor, ao tratamento recebido pelos seus pais, às suas companhias no colégio, às músicas e programas de TV aos quais você é exposto etc.

E eu acredito nisso também. Provavelmente é a soma dos dois fatores, genética e estilo de vida/criação. Talvez tenham mais outros fatores que esses. Talvez as variáveis sejam tão absurdamente infinitas que seja simplesmente impossível que todas sejam estudadas, catalogadas e compreendidas em sua totalidade.

E daí? Não podemos apenas sermos gays, existirmos, e pronto? Afinal, sempre foi assim antes.

Homossexualidade: 360 graus ao longo da existência humana

É curioso notar a volta que a homossexualidade está dando: de absolutamente normal para pecaminosa por causa das religiões, pervertida para pessoas tradicionais, e disso para levemente tolerada e problema político, rumo à normalidade de novo.

Sim, pois foi a igreja católica que arruinou a liberdade sexual que tínhamos por aqui: foram as leis religiosas e o conceito (vago e unilateral) de pecado que trouxeram a noção de transgressão, o pudor, as proibições e os preconceitos – a homofobia, por exemplo, chegou junto dos europeus.

Os nativos já estavam carecas de saber e experimentar tudo o que era possível trazer para cá em termos sexuais: homossexualidade, bissexualidade, transexualidade, bigamia, poligamia, masturbação mútua, sexo anal, oral, grupal. Em estado livre, em que nos deixam ser quem somos sem as regras e culpas das religiões, tudo isso faz parte da experiência sexual humana. Com o pretexto de civilizar os nativos, colonizadores destruíram milênios de conhecimento autóctone sobre sexualidade.

Entre os maias, a homossexualidade era frequente, e também uma espécie de rito de passagem da infância para a adolescência (como ocorre, aliás, com tantos homens e mulheres na nossa sociedade atual, apesar de poucos admitirem).

A sociedade Cherokee – os nativos da América do Norte, colonizada por protestantes – dava às mulheres postos semelhantes aos dos homens; o que chamamos de adultério era permitido a ambos os sexos, sem punição, assim como o divórcio. Havia já transgêneros, encontrados em mais de 150 tribos norte-americanas sob o nome de Two-Spirit [“dois espíritos”]: os primeiros relatos de colonizadores sobre eles é datado do séculos 16. Eram homens que gostavam de estar entre as mulheres, fazer as coisas que elas faziam e usar as roupas típicas delas. Ou o contrário: mulheres que gostavam de se vestir como homens.

Quando você virou hétero?

E pra quê estou falando de coisas tão antigas? O que tudo isso tem a ver com ciência?

É que, de uns tempos pra cá, aplicada à minha vida pessoal pelo menos, talvez a ciência não seja a explicação que vai me acalmar mais. Na verdade, apesar dos pesares, talvez ela seja apenas uma saída “simples” para uma questão muito mais complexa.

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“Meu nome é Brock, tenho 7 anos de idade e me considero mais do tipo diva”

Como disse antes, nossa sexualidade talvez não tenha uma explicação fácil, é uma soma de inúmeros fatores impossíveis de medir. E nossa busca incansável por uma explicação pode acabar até enfraquecendo nossa luta de aceitação.

Explico: apelar pra ciência nos parece a forma mais simplista e formal de justificar nossa existência, encerrar os debates e seguir adiante com o bonde. Mas acredito que falar que não nascemos assim, que não nascemos gays, tem um poder de mudança bem grande também. Por um simples motivo: enquanto negamos que nascemos assim, também afirmamos que ninguém nasceu.

De certa forma, perguntar sobre o que leva uma pessoa a ser gay já é sozinha uma atitude preconceituosa, pois supõe que a heterossexualidade não precisa de explicação. Quando questionados sobre “quando viramos gays”, é bem comum respondermos ao nosso interlocutor com a mesma pergunta: “e você, quando virou hétero?”

Eu não nasci assim – e nem vocês. Ser gay não é uma escolha consciente, assim como ser hetero não é. Os fatores que resultaram em cada orientação não importam, o que importa é a força de colocar tudo ao nosso redor em cheque, desnaturalizando o que está ao nosso lado, ajudando a limpar os óculos de todo mundo que enxerga a heteronormatividade como normal só por ser a regra da nossa sociedade atual. Entende a diferença?

Não existe gênero não opressivo, não existe dissidência sexual ou de gênero não oprimida. Sim, os seres humanos saíram da animalidade, somos seres de cultura. E exatamente por isso acho essa ideia mais revolucionária ainda: au naturel, a única coisa que existe são desejos, vontades, afetos e corpos emancipados.

Imagine um mundo onde gays não precisam brigar por inclusão, e sim um mundo onde ser gay (ou lésbica, ou bi, ou trans, ou travesti) é tão irrelevante – por ser absurdamente normal – que não precisaríamos nem ter esse nome. Um mundo onde todo mundo pode ser como é.

Imaginou?

*

Fontes:
Por que os gays são gays?
Como a Igreja arruinou a vida sexual
Post pessoal Amanda Palha

Leia também:
O crente na Parada LGBT
Tirem o amor fora disso
Eu queria ter sido um gay de 15 anos
Gays velhos estão com depressão
Gays contra casamento gay

Fui numa suruba e deu tudo errado

Peguei minha mala – na verdade, uma mochila roxa com três trocas de roupas, algumas cuecas limpas e roupa de cama – e entrei no metrô. Em uma estação, todo mundo ia se encontrar e pegar um ônibus fretado para passarmos um final de semana juntos em um sítio enorme, com piscina e muitos quartos. A gente combinou tudo antes por Facebook. O preço era alto – 250 reais! – mas incluía ida e volta, café da manhã, almoço e jantar todos os dias, o cachê do DJ, e muita bebida – cervejas, vodcas, energéticos e refrigerantes. Sim, eu estava indo pra uma suruba.

*

Eu tinha andado muito pra baixo. Meus últimos relacionamentos (ou tentativas de tê-los) tinham dado muito errado e quase em todos a culpa era minha: ou eu mostrava interesse demais ou mostrava interesse de menos. Já tinha um bom tempo que tudo que eu fazia era ficar em casa vendo TV ou saía com amigos e ficava reclamando da vida o tempo inteiro.

Eu precisava dar uma sacudida e essa ideia do sítio pareceu perfeita: um final de semana inteiro de festa, piscina, diversão, e sem nenhuma série pra assistir e sem a ansiedade de estar logado em apps de pegação, o que me consumia muita energia e zero resultado.

É, mas tinha o lado ruim: se tudo der errado, eu não teria como ir embora sozinho e minha autoestima logo me levou a pensar em como seria se todo mundo arranjasse alguém pra dar uns pegas menos eu. Afinal, não seria uma suruba de fato e nem pegação 24 horas por dia, era só um final de semana de uma festa bem permissiva, digamos assim. Ser o único no sítio dormindo sozinho e indo embora tão desacompanhado quanto cheguei era uma possibilidade muito real – quase inevitável, na verdade.

Cheguei no lugar combinado e não conhecia, literalmente, nenhuma das pessoas ali. Os transeuntes usuais da estação não estavam entendendo nada: de cara, eram impactos por mais ou menos uns 40 gays já bebendo Catuaba e dançando na entrada do metrô. Não era exatamente uma sexta-feira normal pra quem passava ali sempre. Fui tentando me enturmar, conversando com as pessoas e participando da vaquinha da próxima rodada de bebidas enquanto o ônibus não saía. Tinham designers, atores e até professores de matemática ali. Finalmente entramos e automaticamente o grupo se dividiu: foram para o fundo do veículo os que queriam cantar, fazer coreografias e continuar bebendo, e ficaram na frente os que queriam descansar ou conversar entre si.

Papo vai, papo vem, o motorista anuncia que o caminho para o sítio tem árvores muito baixas e que o ônibus não conseguiria seguir até lá. Descem todos, pegam suas malas (sem trocadilhos) e seguimos os últimos metros a pé. No caso, pareceu um milhão de metros, já que tinha chovido no dia anterior e o caminho estava cheio de lama, além de ser bem escuro. Todo mundo trabalhou junto somando lanternas de celulares, andando observando o coleguinha à frente para não pisar em falso. Parecia uma prova do “No Limite” (alguém lembra desse programa?). Nesse momento, lembro de pensar: “meu deus, o que as pessoas [eu incluso] não fazem em troca de uma trepada, né?”

Quando todos chegamos ao famigerado sítio, a cena parecia uma versão 18+ das “Olimpíadas do Faustão”: todo mundo correndo atrás de quartos. Alguns eram coletivos (com 5 ou 6 camas de solteiro) e outros, os mais cobiçados, eram mais reservados (com apenas 2 camas de solteiro ou apenas uma de casal). Fiquei em um com cama de casal, thank you very much.

O som já estava bem alto (todas as músicas feitas pela Anitta ou pelo Justin Bieber na vida deles e em todas as versões possíveis, com todas as variáveis de featurings, remixagens e idiomas) e todo mundo largou as malas (sem trocadilho) nos quartos e foi pra beira da piscina, onde era a pista. Começamos a beber e dançar e foi muito legal. Finalmente todo mundo estava à vontade no mesmo espaço e nos encontramos com os caras que ainda não tínhamos visto – pois alguns foram direto, de carro, pro lugar. Ou seja, agora éramos mais de 50 pessoas, era uma festona de verdade.

Mas ser uma festona de verdade significava que, em muito pouco tempo, já estavam montados grupinhos. É difícil descrever a particularidade de cada um mas, se você os visse, concordaria comigo: “sim, esse cara tem tudo a ver com esse e aquele ali”. O jeito de falar, de agir, de se vestir, tudo isso entra em questão quase que de forma insconsciente e os grupos – que geram tantas brigas “do lado de fora” – são invariavelmente formados nesse ambiente, que foi montado exatamente para descartar um pouco desses rótulos. E o local influencia nisso também: o grupinho que vai fumar, o que vai pra mesa de sinuca, o que vai ficar fazendo drinks etc. Bom, já eu, que não tinha nada a perder e não conhecia ninguém aqui, fui pegar mais cerveja e tentar curtir a noite independente disso.

E curti: lá pras tantas da madrugada, os rótulos sumiram. A piscina refletia a lua enquanto todos dançaram com todos. Dançavam no cantinho, dançavam fazendo coreografias. Bebiam enquanto dançavam, dançavam enquanto beijavam, beijavam enquanto bebiam. Todos juntos. Aqueles gays “discretos”, que fazem carão na boate, dançam e pegam os gays afeminados rebolativos. Ursos pegando magrinhos, bombadinhos pegando nerds. Parecia que, antes de tudo isso acontecer, era importante fazer esse tipo de definição de tribos, só para deixar claro que o final de semana era uma grande exceção. Tipo: “sim, tá todo mundo na mesma, e provavelmente vai todo mundo se pegar em algum momento, mas antes é preciso deixar claro que eu tô mais naquele grupo ali que naquele outro”. Entende o que quero dizer? É quase que um sistema de definição de castas mesmo, antes de todos se misturarem finalmente.

Na verdade, era tudo um final de semana entre novos amigos. A ideia nunca foi rolar uma suruba envolvendo todas as pessoas ao mesmo tempo, claro, eram só gays passando três dias juntos com a premissa de que seria permitido ser sexualmente insinuante, no mínimo. E as pessoas estavam sendo mesmo, mas nada tão diferente de uma balada como tantas outras. Ao invés de conhecer um cara na balada e levá-lo pra um sexo casual em casa depois de dar em cima dele a noite toda, você conhecia na pistinha do sítio mesmo, e levava pro seu quarto ali do lado, se quisesse. Com a possibilidade de, depois, você simplesmente passar um pente no cabelo e voltar pra pista e repetir tudo de novo.

Quando deu umas 5 da manhã, resolvi ir dormir. Mas a música ainda estava muito alta e fiquei acordando toda hora. Às 8 da manhã, cansei de tentar dormir e saí do quarto, decidi tomar café, dar uma andada, mas aí a música parou. Então, depois de comer, voltei pro quarto pra dormir um pouco. Mas antes das 10h já tinha mais música – era sábado de manhã e era “A Hora da Piscina”.

Chamo assim pois era quase que uma atividade mesmo, uma apresentação: estava até sol, mas continuava bem frio, então em teoria ninguém ousaria entrar na água. Mas os gays musculosos já estavam todos de sunga se exibindo dentro e ao redor da piscina, com o restante bebendo ao redor. Era como se fosse um palco e estivesse rolando uma performance ali. Não tinha TV, celular, nada pra fazer. Que mal faz ficar mirando uns boys gostosos com pouca roupa, né não? Nada contra, acho ótimo, é apenas sintomático.

Ouvi dizer que, durante a tarde, rolou de fato uma suruba na outra casa do sítio, a que ficavam os quartos compartilhados. Envolveu aparentemente umas 15 pessoas, mas não vi nem participei. Na hora, eu tava no playground do sítio, fumando maconha no balanço, ao lado do escorregador. Parabéns pra mim.

Na noite de sábado seria a grande festa do final de semana. A organização (que na verdade era um menino só) tinha uma temática definida, o que implicava em uma decoração especial e todos vestidos de acordo com o dress code. Falando assim, parece uma festona foda de BDSM igual vemos em filmes pornôs independentes da Alemanha e que vai todo mundo chegar usando harness e jockstrap de couro, né? Quem me dera. Ao invés disso, o tema era simplesmente “selva”, a decoração eram umas máscara de girafa e leão pregadas na parede, e algumas pessoas estavam vestidas de verde, com “É O Tchan Na Selva” tocando meia dúzia de vezes – sinceramente, não consigo pensar num som menos sexy que esse. Não se fazem mais festas de sexo como antigamente.

Na verdade, pra ser justo, tinha mais que isso: um cara que fez pintura facial pra parecer uma cobra, outros se montaram e apareceram vestidos de drag queen na festa, e alguns dos bombadinhos da piscina estavam fantasiados de Tarzan, com tanguinhas verdes e sem camisa, claro. Eu estava de calça de moletom e casaco, estava gelado pra caralho (sem trocadilhos) e eu sou friorento.

Esse foi o dia mais, qual seria a palavra?, “movimentado” pra mim. Não que eu tenha sido um santo no dia anterior, mas nessa festa a coisa ficou mais pesada. No domingo de manhã, na segunda rodada d’A Hora da Piscina, enquanto muitos tomavam café da manhã, consegui uma carona para voltar mais cedo de carro e fui embora logo depois de almoçar.

Na segunda-feira, por conta do evento de Facebook que foi montado para organizar tudo, vários dos caras me adicionaram na rede. E aí caiu a ficha da cilada que eu tinha caído: um dos caras mais legais do final de semana nunca respondeu a mensagem de “oi” que mandei; um menino mandou inbox falando que se arrependia de não ter vindo falar comigo (cara, a gente estava em um sítio isolado, numa festa de pegação que durou 3 dias, e agora você vem dar em cima de mim via chat?); um dos meninos mais bonitos do rolê era evangélico e estava noivo de uma menina, com um perfil cheio de declarações de amor e fotos juntos. E por aí vai.

Aí entendi aquilo que disse no começo do texto, do final de semana ser uma exceção: eu decidi ir por imaginar que seria uma experiência diferente, algo mais libertador do que eu estava acostumado a ver e experimentar. Mas, pra mim, não foi. Só na volta percebi que, já pra esses outros, super foi. Só que de um jeito que me soava estranho, pois parecia ser uma exceção por eles, aparentemente, não fazerem nada nem remotamente parecido com isso em suas rotinas.

Explico: eu nunca fui numa sauna, e lembro muito bem de um colega descrevendo como funcionava. “É ótimo pois tem uns boys muito gostosos que te dão bola, sabe? Tipo, sabe aquele gostoso da boate que fica fazendo carão e não pega ninguém na balada? Depois da balada ele vai pra sauna e pega todo mundo lá”, comemorou esse amigo de um amigo ao me contar. O curioso é que (por conta da minha autoestima, sei lá?) eu achei a descrição a pior do mundo. Minha interpretação foi que esses “boys gostosos” da sauna vivem nesse mundinho de aparências, de segurar tudo o que têm vontade de fazer pra só fazerem quando ninguém estiver olhando. Na balada (em público) nem me olha, mas na sauna (mais privado) me pega? Assim eu não sei se quero não, independente do contexto.

Eu não sei se eu é que já vi e fiz coisas demais na minha vida, mas o que eu tiro dessa experiência é uma coisa que, na verdade, eu sempre soube: apesar de tudo, as pessoas ainda são extremamente covardes com suas reais vontades, com seus desejos e fetiches, e se permitem explorar muito pouco dessas coisas.

De certa forma, no fim, fiquei meio feliz de ver que o que todo mundo estava tratando como um super acontecimento foi apenas uma festinha caída pra mim. Quem sabe essa experiência seja a primeira (ou uma das primeiras) deles rumo a uma vida menos hipócrita, né? Tomara.

Texto de 2017

Tirem o amor fora disso

É muito complicado falar de homossexualidade no Brasil, um país recheado de preconceito e ódio. Sabia que a cada hora, um gay sofre violência no país? O número de denúncias cresceu 460% desde 2011 (fonte).

Mas o que é um crime homofóbico? É o crime que aconteceu por causa da homossexualidade de uma pessoa. Veja bem: se um cara reage a um assalto e leva um tiro e acontece de ele ser gay, isso não é um crime de homofobia. Tem muita gente que ainda se confunde – ou finge se confundir. O crime de homofobia é quando o gay leva o tiro por ser gay. É quando o cara ser gay é o motivo da bala, da pedrada, do soco, do chute, da lâmpada na cara. Como se fosse uma punição. Sempre argumentam: “ah, mas morre muito mais hétero que gay no mundo”, só que essa é a diferença. Nenhum hétero é assassinado por ser hétero; ser hétero não é a motivação real de nenhum crime. Ser gay sim.

Ainda estamos engatinhando – e muito lentamente – para a aceitação por aqui. Tem gay na novela e nas paradas musicais de sucesso e é ótimo isso – mas continuamos sendo zoados na escola, apanhando dos nossos pais, sendo expulsos de casa, sendo demitidos sem justa causa, sendo assassinados. Por isso, é muito cedo para problematizar uma certa “heteronormatização” que percebo sempre vir com essa aceitação. Mas do lado de cá, acho que precisamos falar sobre isso.

É o seguinte: você já deve ter reparado por aí que todos os discursos de apoio à causa, seja ele vindo dos parentes que dizem aceitar ou das marcas de perfume de olho no nosso dinheiro, dizem que pode sim ser gay, que você pode AMAR quem você quiser, que o amor é lindo – e taca lá selinho de “Love Wins” no avatar da galera no Facebook.

E é sobre isso mesmo que queria falar: amor. Aceitação de uma minoria e garantia de direito civis básicos precisam ter a ver com amor? Só devemos respeitar uma orientação sexual “diferente” se a pessoa ama? Só vale ser legal com quem tem relacionamentos estáveis, parceiros amorosos, ou filhos? Quer dizer, se você não ama alguém, tudo bem levar um tiro na cara?

Me incomoda um pouco essa sensação de que para termos direito e voz temos que “imitar” os héteros. Casar, ter relacionamentos longos, monogâmicos, ter filhos, formarmos família, passearmos com nossos cachorros magrelos ao redor do quarteirão. Eu não tenho nada contra essas coisas e se esse é o desejo genuíno da pessoa, eu realmente fico muito feliz de ela ter conseguido alcançá-lo. Mas é inegável que a heterossexualidade compulsória cria gays que compactuam com os valores heterossexuais, felizes em fazer parte das imposições cristãs, jurídicas e coloniais que eles inventaram.

O capitalismo se apropriou das nossas lutas mais rápido que nossa sociedade política. Se achamos que estamos sendo representados porque tem personagem queer na televisão ou banderinha no tênis, é porque então esquecemos que nossa comunidade deve ser, em essência, contra-cultura (já que vivemos numa cultura heteronormativa). E aí achamos normal exigir respeito apenas ao gay que parece hétero. Se você é um gay que faz essas palhaçadas hétero, aí sim você “merece” ser respeitado. E não pode ser assim.

Queremos respeito sem essa necessidade de romantizar a homossexualidade para que ela seja palatável para a sociedade heterossexual. A gente quer respeito pra todo gay (na verdade, pra todo mundo da comunidade LGBT+) quando essa pessoa estiver sem amar ninguém também – do mesmo jeito que um hétero que está sem amar ninguém é respeitado no condomínio que ele mora, no trabalho dele, andando na rua, usando a roupa que quiser.

Como disse, não me entendam mal, o amor é lindo, mas ele não pode ser a pauta. Eu sei que eu posso amar quem eu quiser, nunca pedimos sua permissão pra isso. A gente quer respeito sem esse tipo de condição. A pauta é política – não sentimental.

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Eu queria ter sido um gay de 15 anos

Eu morro de amores quando estou na rua e passa por mim um casal gay com 15 anos de idade, de mãos dadas. Com 15 anos eu estava tão confuso, reprimido e deprimido, que eu nem lembro direito da minha vida naquela época. Então eu acho lindo quando eu vejo esses casais: eles já estão esclarecidos o suficiente pra ter uma adolescência mais normal.

Nessa idade, quando você é um gay que não se descobriu 100% ainda, parece que sua vida acontece em um universo paralelo ao das demais pessoas, da sua idade, ao seu redor. Todo mundo estava sorridente, tendo namorinhos, indo em festinhas, fazendo as coisas normais de adolescentes. E eu lá, sozinho em casa, chorando ouvindo música e lendo Flaubert. Pensando que eu era uma aberração, o único no mundo assim, tendo muita dificuldade em controlar minha ansiedade e projetar uma imagem que eu acreditava ser mais correta.

Ter 15 anos e já ter uma consciência de si o suficiente para se entender como gay e ter um namoradinho é muito lindo. Economiza muita dor e sofrimento para aquele jovem. Aprendi muito levando socos da vida, mas teria aprendido mais coisas (e coisas mais legais) se meu ponto de partida fosse outro, se eu estivesse em um ambiente que me aceitasse melhor e mais cedo – ou se, pelo menos, tivesse sido impactado por mais imagens positivas da comunidade gay – sempre deixada de fora dos produtos culturais que consumimos.

Quando a gente fala que representatividade é importante, é por causa disso. Não é para doutrinar ninguém, não é para a marca ou o programa de televisão pagaram de moderninhos, não é para ensinar as crianças a serem gays – isso não se ensina (tentaram me ensinar a ser hetero e desde sempre soube que não era pra mim). Representatividade é para que esses jovens fiquem um pouquinho mais tranquilos com essa coisa dentro deles, que causa tanta estranheza quando descoberta e que, por eles acharem que devem esconder, traz também tanta dor. É para ajudar a naturalizar algo que já existe nessa criança: ela mesma.

Acredite em mim: o preconceito e o ódio ao redor nos leva de cara a um caminho de auto-negação, pois queremos ser aquilo que os outros esperam de nós, e muita gente morre nesse processo, por dentro e por fora. Morrem pois matam sua essência, morrem pois se escondem atrás de hobbies e profissões e roupas e comportamentos que na verdade não gostam, morrem pois se matam. E morrem pois são assassinados também.

Quando você tem um segredo que pode te custar sua vida, não existe infância, não existe adolescência, não existe a vida direito. Eu me escondi na minha coleção de discos, mas tem gente que se esconde nas drogas, na criminalidade, na prostituição, e até na homofobia. A lista é infinita.

A próxima vez que você passar por um casal gay de 15 anos de mãos dadas na rua, lembre-se disso tudo que falei aqui. Não é por ser modinha, não é influência da novela e não é, necessariamente, um jovem sexualmente precoce. São apenas pessoas aprendendo, com erros e acertos, sobre o amor, sobre viver em sociedade, sobre ser humano, sobre ser quem elas são de verdade.

E, no meio do caminho, ainda mostrando pra esse mundo cheio de preconceito e ódio que mesmo que eles ainda não tenham se encontrado por completo, eles já sabem o lugar deles: onde eles quiserem estar.

🙂

Eu achei seu namorado meio feio

Tudo que estou falando aqui também está no vídeo, mas eu fui falando de improviso e ficou confuso, então estou publicando aqui também.

Uns dois meses atrás adicionei no Facebook um menino, achei ele interessante e bonito (quem nunca fez isso, né?), mas não chamei ele pra sair de imediato. Por coincidência, nos vimos num evento na semana seguinte e lá eu dei “oi” pessoalmente. Foi uma conversinha rápida, mas achei ele ainda mais interessante e bonito, então chamei ele pra sair logo depois. Ah, mas ele tinha namorado. Puxa, eu não sabia e pedi desculpas. Ele não estava acompanhado no evento (pelo menos não na hora que o vi) e o perfil do Facebook não tinha status de relacionamento indicado. Foi um erro honesto e inocente, ele me desculpou com tranquilidade, e vida que segue.

No dia seguinte, ele compartilhou um meme que dizia “por incrível que pareça, eu sou monogâmico” (ou algo parecido com isso) e parecia muito uma indireta para mim. Na dúvida, todos os meus amigos falaram que devia ser, e pra eu deletar ele da minha rede. Pensei: “bom, eu adicionei pra chamar ele pra sair e nós não vamos sair nunca, talvez seja melhor eu deletar mesmo”.

Só que na semana passada nos vimos numa festa. Ele estava com vários amigos e tínhamos até alguns amigos em comum que eu não sabia. Levei um leve susto quando o avistei, mas nos cumprimentamos com grandes sorrisos e beijinho na bochecha, a vibe da festa estava ótima, não teve climão nenhum, todo mundo dançou junto um pouco até. Mais tarde, obviamente um pouco bêbado, eu comentei com um amigo que achava o namorado desse tal menino meio feio, que eles não combinavam, ou alguma coisa desse tipo. No dia seguinte, eu literalmente acordei com uma mensagem no chat do meu Facebook dizendo assim:

– Querido, da próxima vez que for comentar sobre o namorado dos outros, se olhe no espelho primeiro.

Era o menino que eu tinha deletado. E não interessa como ele ficou sabendo que eu falei isso, eu me senti um lixo. Sério, um lixo! Fiquei com tanta vergonha que eu não cabia em mim. Pedi mil desculpas, culpei a bebida, pedi desculpas de novo, falei que pediria perdão pessoalmente no futuro, pedi desculpas de novo, e o menino respondeu apenas que esperava que isso não se repetisse.

Eu passei a semana inteira pensando nisso. Quem eu penso que eu sou pra julgar o relacionamento alheio? E feio de acordo com qual referencial? Se eles se gostam e se acham bonitos, é isso que importa. Eu não tenho nada a ver com isso, eu não tenho que ter opinião alguma, muito menos verbalizá-la. Como eu pude ser tão idiota? A minha opinião não é necessária ou relevante.

Eu passei a semana inteira pensando nisso. Somos treinados pra julgar e é complicado separar um julgamento de uma opinião. Eu ter achado o cara feio não quer dizer nada, nem mesmo que ele é feio. Mas o estrago foi feito. Muitas vezes (muitas, mesmo) eu sei que eu fui esse cara, o cara do casal que as pessoas de fora olham e pensam: “nossa, nada a ver esses dois, esse cara é meio feio pro Fulano”. E eu sei como isso pode doer (e no meu caso, como isso me deixava ainda mais inseguro sobre o relacionamento). Com que direito eu passo isso pra frente e repito com os outros exatamente algo que já me fez tão mal? Eu devia saber melhor.

Eu passei a semana inteira pensando nisso, em como a gente é criado pra ser idiota uns com os outros, pra julgar os outros, as escolhas do outros. Em como a gente não pode viver em uma novela mexicana, com inimigas espalhadas pela cidade. Quem está contra a gente, está super unido – e a gente tem que se unir também: a gente não é concorrente um do outro, o mundo é mais que homem, cada um cuida da própria vida, cada um sabe o que lhe faz bem e ninguém de fora tem nadinha a ver com isso.

Mas a gente só lembra dessas coisas quando tem alguém querendo cuidar da nossa vida, né? Quando somos nós os falantes, os comentaristas, esquecemos dessa máxima e passamos pra frente esse comportamento que tanto odiamos quando fazem com a gente. E enquanto não somos pegos no flagra, não nos importamos. Não julgar é uma tarefa muito complicada, mas guardar nossos julgamentos é um pouco mais fácil. É um esforço consciente, mas é possível.

Eu passei a semana inteira pensando nisso e queria que você pensasse um pouco sobre isso também, por isso escrevi esse post e fiz esse vídeo.

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Aquele grupinho de gays bem sucedidos (não) é uma farsa

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Uma vez eu escrevi sobre “sucesso” ser a palavra mais vazia que existe. O que é sucesso para um, não é para os demais. A gente compara os momentos de holofote dos outros com nossos momentos de bastidores e isso cria uma confusão mental imensa, pelo menos em mim.

Como será que tal pessoa é tão bonita e rica e namora com esse partidão e tem esse emprego incrível, e eu aqui feio e pobre e sozinho num empreguinho? A questão é que é isso que as pessoas projetam. E é normal, todo mundo quer mostrar pros outros só o que têm de melhor, ou pelo menos o lado bom daquilo que têm. Não é público o tanto de produto que a pessoa passa pra ficar com aquele cabelo, se ela fez uma plástica, as comidas gostosas que deixou de comer pra se manter na dieta, a dívida que fez depois de comprar aquelas roupas incríveis da marca foda, o que ela deixou de fazer pra poder conseguir viajar para aquele lugar, nem que o namoro está por um fio ou que o relacionamento é de fachada.

Vou tentar contar aqui uma história que é real (muito real) mas não quero, de maneira alguma, expôr as pessoas envolvidas, então vou mudar algumas coisas, mas basicamente foi assim:

Minha auto estima não é das melhores. Sou de fases. Uns dias me sinto o cara mais legal do mundo, outros eu não quero nem levantar da cama. Paralelo a isso, sempre tive problemas para me encaixar em coletivos. Tenho amigos maravilhosos, mas todos funcionam na minha vida quase que individualmente. Eu não tenho aquele grupinho de amigos inseparáveis que faz tudo junto. Parte por ter tido uma adolescência complicada, com minha homossexualidade escondida e o medo de ser exposto. A outra parte tem mais a ver com uma (eterna, pelo visto) dificuldade de encontrar um meio termo entre as atividades que parecem ser mais, digamos, populares entre os gays no meu círculo de amizade: cuido demais da minha saúde pra beber pra caralho, ir pra balada e dormir pouco todos os dias – e meu trabalho nem me permitiria isso -, mas também não cuido o suficiente pra ter uma turminha que sai pra pedalar ou fazer, sei lá, mahamudra no Parque Ibirapuera sábado de manhã. Meu meio termo é Netflix e livros, o que posso fazer sozinho – e acabo fazendo sozinho mesmo. Talvez isso até explique o motivo de eu sempre estar querendo namorar – é carência de companhia, não necessariamente de sentimentos.

Enfim, divaguei. Mas é pra explicar que essa falta de grupinho me deixa incomodado. Sempre sinto que eu devia ter um, que se eu tivesse minha vida seria não apenas diferente, e sim melhor. Mas as poucas tentativas de fazer parte de um grupo já existente foram pra lá de frustradas. Sentia dificuldade em acompanhar o ritmo de novidades, de coisas que me fariam sentir que faço parte: as bandas, as divas pops, as roupas, os looks, os conceitos, as discussões, a rotina, as fofocas e até mesmo a tolerância alcóolica deles nem sempre fazem eco às minhas. Eu tenho meu gosto e meu ritmo para as coisas, para descobrir, gostar e conquistar – sinto que estou velho demais para viver dentro de um episódio eterno de “Skins”, mas sei que sou novo demais para viver dentro de “Golden Girls” também. Talvez seja apenas o caso de não ter achado “a minha” turma – mas se começar a falar disso vou divagar de novo.

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Sou um jovem gay em São Paulo e, como não sou nada discreto e fora do meio, acabo fazendo contato com vários grupos. Um amigo aqui, outro ali, prazer, tudo bom? Conheço MUITA gente legal e alguns grupos de amigos que me dão essa sensação (gostosa e horrível) de “puxa, queria estar ali”. Mas basta conviver um pouquinho e bate aquele sentimento de não-pertencimento: se é pra achar um grupo de amigos, eu devia ficar confortável com eles, certo? Mas nunca parece ser o caso. Me sinto vigiado, tanto por eles quanto por mim mesmo. Observado. Não quero cometer deslizes. É divertido no começo, mas é exaustivo no final e eu acabo me fechando. Não é esse aqui o meu grupo, então aí saio. Aliás, na maioria das vezes, mal entro: essa distância faz com que eu nem seja considerado para vários convites, eventos, festas, jantares etc. E vira um ciclo sem fim de não-ser-convidado, não-ser-visto e não-ser-convidado-por-não-ter-sido-visto.

Às vezes isso me dá vontade de chorar (pois acho que essa sensação eterna de não-pertencimento pode ser a raiz de um monte de problemas sociais que eu tenho – e que ninguém vai ter paciência, nunca, de olhar com cuidado pra mim ou me ouvir de verdade). Mas às vezes isso me dá vontade de dar graças aos céus (pois por mais que eu admire certos grupos e pessoas, tenho um medo de rejeição tão grande que acho que o preço para descobrir pode ser muito alto).

Mas c’est la vie. Vida que segue.

Por uma enorme coincidência, conheci uma menina dia desses, de uma família bem rica, dona de alguns imóveis na cidade. Em um dos imóveis morava um desses gays Alpha da noitezinha de São Paulo – quem vive aqui sabe como essas coisas são reais. Aquele carinha que onde você vai, mesmo que você não queira, tem alguém especulando sobre onde foi, o que fez, quem está pegando, se é relacionamento aberto ou não, onde passou férias, qual o novo emprego etc. E aí ela me contou algumas fofocas sobre aluguéis atrasados, brigas com vizinhos, mudanças de cidade, intervenção dos pais.

Por alguns segundos, confesso, abri um sorriso. Ufa, a vida dos outros não é tão perfeita, afinal de contas! Posso respirar melhor agora, a minha vida não é tão merda assim! O Fulaninho Perfeitinho Famosinho está pior que eu! Mas logo mudei de expressão. Primeiro por estar, aparentemente, feliz com a desgraça alheia – e essa é uma coisa que eu não posso apoiar. Segundo, pois, puxa, eu já devia saber disso, afinal. É só abrir meu próprio Instagram ou Snapchat: lá você não vê nada sobre minha enorme dívida no banco, sobre os dias que acordo me sentindo um lixo, sobre minhas sérias brigas com minha família. Isso tudo está embaixo do meu tapete e é óbvio que as outras pessoas estão fazendo a mesma coisa.

E aí pensei até em outra coisa: pra quê estou dando tanta importância para tudo isso? Como eu disse, o que é sucesso para um, não é para os demais. Eu não gostaria de voltar a morar com meus pais, mas vai que o Fulano gostou dessa mudança? Quem sou eu pra dizer que esses acontecimentos na vida do cara fazem da vida dele uma merda? O que eu preciso é mudar ainda mais o meu conceito de “sucesso”. Eu falo isso o tempo inteiro e mesmo assim ainda não aprendi, pelo visto.

O que funciona pra ele ali, não funciona pra mim. O que ele tá fazendo ali não é o que eu queria estar fazendo. A vida que ele leva não é a vida que eu quero. Mas e o contrário? Se eu também escondo o lado ruim da minha vida, será que tem alguém vendo ela de longe e achando que eu sou foda? Será que tem alguém que me acha bonito e, por isso, se acha menos bonito? Queria pode fazer algo à respeito, mas não é de propósito. Estamos cada um apenas vivendo nossas vidas, sem noção de como podemos estar afetando os outros. E esse também é (ou pode ser) o caso desses grupinhos todos, que me fazem sentir tantas coisas: claro, alguns por aí estão vivendo de desconexão, escravos do luxo ou da aparência do luxo, mas muitos estão simplesmente vivendo suas vidas e todas essas deduções sobre eles vieram de mim e apenas de mim.

Mas se eu sei que a gente compara os momentos de holofote dos outros com nossos momentos de bastidores, pra quê eu ainda faço essa comparação? Aliás, pra quê eu comparo tanto meus bastidores com meu holofote até hoje? Porra, por que, às vezes, ainda me sinto tão mal com o que eu sou e tenho?

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Foto: Instagram @gabrielkdt

O que os gays podem fazer pelo feminismo?

Um tempão atrás teve uma marcha de mulheres contra o Eduardo Cunha que eu queria muito ter participado, acho aquele cara um imbecil e acho que nem preciso explicar os motivos. Mas quando eu falei pra uma amiga que queria ter ido, ela falou que eu não devia ir não, pois era uma marcha das mulheres.

Eu entendo o que minha amiga quis dizer. Feminismo está sendo muito falado por aí e tem muita gente e muitas marcas se aproveitando dessa discussão pra se promover, como se tudo fosse uma modinha, roubando o protagonismo da mulher nessa luta. E é contra isso que minha amiga estava falando. E eu concordo: feminismo é a insubmissão às situações de repressão ligadas especificamente ao seu gênero. É sobre colocar a mulher em lugares que, historicamente, ela não teve acesso – não por não querer, mas por não ter “permissão” ou oportunidade. Mulheres votando, mulheres no topo de empresas, mulheres na presidência. E por aí vai.

Mas eu queria ter ido à marcha mesmo assim, acho importante inflar esses movimentos. Quero estar do lado das lutas que me identifico, que acredito justas. Por exemplo, eu não quero que tenham só gays na Parada Gay. Eu acho importante termos heteros lutando pelos nossos direitos, isso é viver em sociedade, lutar pelo reconhecimento dos direitos dos outros, lutar por liberdade para todos. E não interessa quantos heteros têm numa Parada Gay, ela continuará sendo a Parada Gay. Certo? A diferença é que os heteros vão pra caminhada – e não pro palanque.

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“Eu preciso de feminismo pois: é fácil ignorar o sexismo quando ele funciona a seu favor”

Essa questão de roubo de protagonismo é complicada. A luta é da mulher, mas quem mais a oprime é o patriarcado, é o homem, então não é legal ter alguns deles do seu lado, jogando no seu time? Pelo menos também é assim que penso sobre direitos gays: quem mais faz contra a gente são os heteros homofóbicos, então toda vez que vejo um hetero defendendo gays, penso: “ufa, um a menos pra gente convencer, um a menos pra gente ter que lutar contra”. Mas enfim, sou homem, nunca saberei de verdade como é ser mulher, então posso estar errado sobre isso. Quem quiser, deixe nos comentários o seu ponto de vista sobre esse ponto.

O fato é que aí eu fui no meu Facebook e perguntei então: “o que os gays podem fazer pelo feminismo?” – e fiquei chocado que TODO MUNDO que respondeu era gay. E, poxa, eu fiz a pergunta para as mulheres!

Então te pergunto, amigo gay, o que você tem feito pelas mulheres? Alguma coisa real, no seu dia a dia, que vai de fato mudar essa situação, sabe? Creio que mudar suas ações no mundo real faz mais diferença na sociedade que só ler e debater sobre o assunto nas interwebs – apesar de tudo ser incrivelmente válido.

1- Parar de xingar seus amigos no feminino

A primeira coisa que pensei foi essa, bem pequena, mas eu acho bem simbólica. Muitos gays chamam seus amigos de “amigas” e usam outras palavras no feminino na hora de fazer humor. E tudo bem. Amo essa fluidez de gênero, também faço isso. Mas preste atenção se você não usa essas palavras só na hora de xingar. Vadia, vaca, piranha, ridícula, vagabunda. Todos esses adjetivos têm sinônimo no masculino, use eles – as mulheres já sofrem demais com esses xingamentos para até você passar eles pra frente por aí. E outra: tente usar só palavras boas no feminino com seus amigos. Maravilhosa, gostosa, perfeita, linda, arrasadora.

2 – Parar de falar que mulher mal humorada precisa de rola

Queridos, uma mulher mal humorada não está precisando de rola. O seu humor depende da quantidade de sexo que você faz? Aliás, bom humor depende da quantidade de sexo que uma pessoa faz com um homem? Se for assim, homem hetero e mulher lésbica seriam sempre mal humorados e sabemos que não é bem assim. Homem não é tudo na vida de uma mulher e todo mundo tem o direito de acordar com o pé esquerdo de vez em quando – e tem gente que é sempre mal humorada independente de qualquer coisa. Você nunca teve uma noite de sexo maravilhosa seguida de um dia péssimo? Pois é. Aliás, você acha que a vida sexual do outro é da sua conta? Desculpe, mas não é.

3 – Não rir de piada machista

Quando alguém fizer uma perto de você, basta simplesmente não rir. Se contarem uma diretamente para você, fique sério. Aliás, fale pra pessoa: “Não entendi, você pode me explicar qual é a graça?” e assista a pessoa ficar constrangida. Se você não aguenta mais piadinha sobre viado, imagina o que elas passam com as piadas de loiras burras, por exemplo. Vamos parar de passar pra frente essas coisas.

4 – Parar de cagar regra sobre o comportamento e as roupas delas

Se ela fala alto, usa decote, roupa curta, muita maquiagem, pouca maquiagem, fez plástica demais ou de menos, está gorda ou magra, não te interessa. Sua opinião sobre a aparência dela não precisa ser verbalizada. Pra ninguém. Muito menos pra ela. Fica de boinha na sua. Vamos combinar assim: se ela te perguntar objetivamente (“essa roupa está boa?”) aí sim você dá sua opinião. Fechou?

5 – Parar de chamar as mina de “racha”

Sério, reduzir uma pessoa inteira ao orgão sexual dela é muito idiota da sua parte. Uma mulher, qualquer mulher, é bem mais que isso. Do mesmo jeito que você é (ou pelos menos devia ser) mais que apenas o seu pinto.

Tem outras sugestões? Deixe nos comentários pra todo mundo ler.

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Por que muitos gays mais velhos estão deprimidos – e como evitar ser um deles

Quando você vai a um bar ou uma balada, ou quando está navegando em um desses aplicativos de pegação, qual sua reação ao ver um homem acima dos 55 anos?

Já disse uma vez (nesse post aqui) que envelhecer é o elefante branco da comunidade gay. É complicadíssimo assumir-se para si mesmo, para a família, para os amigos. E acho que, por esse motivo, há a impressão que, uma vez tudo isso feito, a vida agora é só festa. Não é bem assim, meu caro. Aliás, a vida de ninguém é só festa. Mas percebo que falta mais no homem gay essa noção, pois existem mais obstáculos em seu caminho – e ele quer que a estrada que ele anda, entre um obstáculo e outro, seja a melhor estrada possível. Super compreensível esse desejo.

Mas, por causa dele, percebo que nos tornamos maquininhas de busca pelo novo, pelo inédito e pela perfeição, três coisas que fariam essa estrada super divertida mesmo, mas que não se sustentam a longo prazo – pois são três conceitos relativos e superficiais.

É antagônico: a eterna busca pela novidade te mantém vibrante e interessante, mas também te impede de se enxergar por completo. E fica fácil escorregar e se tornar uma pessoa manipulável e sem opinião própria (afinal, você gosta das coisas que você gosta realmente por gostar delas ou você apenas quer gostar do que os outros estão gostando?).

Além disso: sem conhecimentos prévios, sem referências do passado, seu julgamento do atual e do futuro é disforme – tudo te parecerá novidade, mesmo sendo só um remix do que já existia no passado e você não buscou conhecer. Não temos tempo pra pensar nisso, nosso medo de parecer desatualizado é grande demais.

vejaE a eterna busca pela perfeição é a cereja no topo desse bolo problemático: no fim do primeiro grande surto de aids dos anos 1980, começou a aparecer aqui e ali um grupo de gays que foi chamado de Barbies, devido ao seus corpos “perfeitos”.

Eles eram uma resposta (quase em inconsciente coletivo) à imagem do gay com aids daquela época, tempos em que o preconceito era ainda maior, que os tratamentos eram bem menos eficazes que hoje, e que quem tinha a doença acabava sempre magro demais, até cadavérico em casos extremos.

Como no começo a aids foi tratada como uma doença exclusivamente gay (o que ela, de fato, não é), essa imagem do gay saudável, bronzeado e musculoso foi propagada mundo afora numa tentativa de tirar dos gays a exclusividade dessa doença – e de mostrar que tinha muito cara saudável nesse grupo. Foi daí que veio o termo em português “sarado” para pessoas com bom condicionamento físico, uma alusão a estar “curado” da doença.

Essa propaganda de estilo de vida saiu de controle e se voltou contra a própria comunidade: quem não estivesse com o corpo torneado era visto com maus olhos e tratado como um gay de segunda por esses caras que se julgavam no topo da pirâmide de beleza. Não me deixam mentir os “machos com corpo em dia, discretos e foras do meio” que você vê hoje nos apps de pegação, uma herança direta desse tipo de pensamento de 30 anos atrás.

E cá estamos agora, num grupo tratado pela sociedade com certo desprezo (onde gay só é legal na hora de fazer rir ou decorar a casa, se o assunto é sério e envolve crimes de ódio ou direitos civis, todo mundo desvia o olhar de você) e onde existem esses preconceitos internos. Todo dia aparece uma cantora nova ou um filme novo ou uma série nova ou um vídeo engraçadinho novo na internet que você pre-ci-sa ver e, depois, ficar repetindo sem parar, achando que a vida – e que ser gay – é sobre isso. Pelo menos no grupo ao meu redor as coisas são assim, certamente cada grupo tem suas “regras” próprias.

A questão é que ninguém ousa ser muito diferente disso, não ousamos botar o pé pra fora demais desse mundinho, pois existe um medo de ficarmos “presos” do lado de fora de um grupo que já é fechado e isolado dos demais. vivemos em uma sociedade heteronormativa, afinal.

A celebração da juventude acontece entre todos os grupos sociais, mas é particularmente forte entre gays. Vemos cada vez mais uma pressão externa (que aí vira interna e depois externa de novo) por uma perfeição física e também de costumes e trejeitos que são ou praticamente inalcançáveis ou vão contra a própria natureza da pessoa em questão. Homens que são muito magros, gordos demais, sem barba ou que são afeminados, por exemplo, parecem não ter vez – e essas características, na maioria das vezes, não são opções dessas pessoas, elas nascem assim e mudar isso nelas mesmas não é uma opção que as deixará bem consigo mesmas.

Captura de Tela 2016-01-10 às 22.05.29E vira esse ciclo, onde todo mundo tenta um pouco, na medida do possível, manter-se “no grupo” por um desses dois caminhos (de estar por dentro da modinha do momento e de correr atrás do corpo perfeito) ou tentando uma combinação deles. Isso não é um julgamento meu, são apenas fatos: a sensação de pertencimento é importante quando vivemos em grupo, somos animais de cultura.

Mas quão longe é longe demais? Somos reféns de nós mesmos, nesse sentido, voltando para a questão lá de cima que é, pra mim, a conclusão de tudo: você gosta das coisas que você gosta por realmente gostar delas ou te ensinaram que aquilo ali é que é bom e você engoliu? Engolimos essa regras desconfortáveis com medo de virarmos piada, de virarmos alvo de crimes, com medo de gostar de coisas que seus amigos não conhecem e se isolar ainda mais.

O que você está fazendo por si mesmo e o que você está fazendo apenas pelos outros? Se você se perguntar esse tipo de coisa e for honesto na resposta para si mesmo, se deixar levar na reflexão e se observar com cuidado, vai saber responder. E essas respostas, uma a uma, podem te ajudar a entender quem você realmente é, do que você realmente gosta, quanto você realmente vale.

Entenda: você é mais que seus seguidores no Instagram, você é mais que os discos que você ouve, você é mais que seus músculos bonitos, você é mais que um nome na lista da festa, você é mais que os memes que reproduz. Mas se você mesmo precisa se enxergar assim.

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81 anos (e 9 meses) sendo gay! Mas talvez seja apenas uma fase.

E não é só achismo meu, tem pesquisa mostrando isso. Gays idosos têm maior tendência à depressão, segundo esse estudo aqui. Afinal, esses gays, agora na terceira idade, foram criados (como nós estamos sendo) dentro de uma cultura de idolatria do corpo e da novidade e, agora, sofrem da sobreposição de dois preconceitos internalizados, contra gays e contra pessoas mais velhas.

Quando a juventude e as novidades passaram, o que sobrou para eles? Pergunte-se: o que vai sobrar para você?

Quanto mais cedo a gente refletir sobre esse assunto, quanto mais cedo pararmos de vermos os mais velhos como incapazes, feios ou inúteis, mais fácil vai ser de tirar essas vendas estúpidas dos nossos olhos – e o resultado é uma boa saúde mental (na velhice e agora).

E temos coisas que precisamos comemorar: ser gay hoje ainda é complicado, mas bem menos que nas décadas passadas. A próxima geração de gays velhos vai ter bem menos membros que foram expulsos de casa ou proibidos de casar com quem queriam, o que já pode garantir um futuro melhor, de forma geral.

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Printscreen de um perfil no app Grindr

Quando você vai a um bar ou uma balada, ou quando está navegando em um desses apps de pegação, qual sua reação ao ver um homem acima dos 55 anos? Lembre-se que você vai virar um deles um dia e esse dia vai chegar mais rápido do que você imagina agora.

Se você é um jovem que não sente atração por velhos, só vai descobrir o “mercado” efervescente das relações inter-idades quando você for a parte velha do casal. E é impressionante o número de gays jovens que só se relacionam com velhos. Não é o estereótipo da relação de interesse (“sugar daddy”) e não é o caso “gosto de mais velhos” quando um cara de 22 anos quer um de 30. São velhos mesmo, de 60, 70 anos. E tudo bem. “Ah, mas eu não quero estar solteiro aos 60 anos”, muitos me dizem. Mas quem disse que isso é regra? Talvez você não enxergue os relacionamentos maduros que são felizes e duradouros pois esses casais simplesmente não frequentam os mesmos lugares que você.

Envelhecer é preciso, pois é inevitável. Não só envelhecer, aliás, amadurecer também. É só olhar aí ao seu redor e você vai ver um bando de homem com 35 anos nas costas ouvindo a música pop que é feita por gravadoras para meninas de 11 anos e lendo nada mais que livros para adolescentes. Esses exemplos sozinhos não dizem nada, claro – você pode fazer essas coisas e ser uma pessoa ótima e esclarecida -, o que quero dizer é que o único conceito de tempo que existe é que ele está passando. E o que você está fazendo de valioso com o seu? O que você está construindo para você mesmo a longo prazo?

A gente envelhece uma hora e ignorar esse fato não vai afastar a velhice de você. Refletir sobre seu futuro, sua velhice, sobre solidão, doença, aposentadoria e até sobre sua morte, não tem nada a ver com depressão ou pessimismo, tem a ver com ser realista. Já que, inclusive, há um limite pro que você pode fazer pela sua própria aparência também.

Acredite: ninguém chega no próprio leito de morte e olha para trás desejando ter dormido mais e viajado menos. Tudo bem querer ser alguém na noite hoje. Mas seja alguém no dia também.

O gay está nu

O projeto Chicos (também assunto desse meu post aqui), que é de dois amigos meus de Belo Horizonte, Rodrigo Ladeira e Fábio Lamounier, mostra nus masculinos de todo tipo. Fui convidado para posar e rapidamente aceitei. Mas do dia do convite ao dia dos cliques pensei muito à respeito. Conversei com um amigo que disse que eu devia posar, com um que tinha posado antes e com um cujo namorado tinha posado para outro projeto. Com todos, debati o motivo da nudez causar tanto desconforto (na gente mesmo e nos outros) e o jogo de ego que inevitavelmente entra em cena. Todo mundo sabe que eu sou o Sr. Problematizador.

O projeto já é famoso na internet, mas é a primeira fase de um ou dois livros impressos e de um documentário em vídeo. Isso já me fez olhar pra toda a experiência de uma outra maneira – é mais que apenas corpos nus, é diálogo e compartilhamento de histórias. Mas eu topei, primeiro, pois tinha vontade. Simples assim. Eu sinto hoje um orgulho do meu corpo (apesar dos pesares) e da minha história (também apesar dos pesares) que nunca senti antes.

Sair do armário não é fácil, especialmente para você mesmo. Do “talvez eu não seja hetero” até o “com certeza sou gay” são várias ideias e conceitos e definições que você sente ou inventa para você mesmo e para o mundo. E se eu puder compartilhar um pouco de tudo isso com pessoas que sentiram o mesmo no passado (ou jovens que estão sentindo o mesmo agora), ótimo. Sinto, inclusive, que se esse blog aqui tem algum propósito para quem lê, é o de debater sobre isso, o de problematizar sobre aquilo que parece determinado ou irreversível e inquestionável, o de incomodar o que está acomodado na gente.

Anos atrás, eu estava saindo com um fotógrafo, ele quis me fotografar nu e eu não deixei. Me achava magro demais e tinha tatuagens inacabadas pelo corpo. Agora vejo como foi uma bobagem isso. Talvez eu nunca vá estar completamente feliz com minha figura, mas eu não devia deixar isso me impedir de estar satisfeito com ela – e desde então aprendi a me aceitar mais. E isso é muito libertador. Tanto que, no dia desse ensaio de agora, eu estava super nervoso ao ir tirando a roupa aos poucos, mas continuei pelado na cama quando a sessão terminou, vendo os cliques na telinha da câmera, já super confortável. Ficar pelado para uma pessoa que você nunca viu pelada de volta e sem pretenções ou contextos sexuais é uma sensação muito complicada de descrever. Muito diferente. E até mesmo isso foi interessante: se vivo defendendo a naturalização do nu, eu devia começar a aplicar isso um pouco mais na minha vida. Quis mostrar meu corpo não por ele ser perfeito, mas por ter feito as pazes com as imperfeições dele. Entre várias coisas, o projeto tenta mostrar a pluralidade do corpo masculino. Também existem padrões de beleza para homens e é tão complicado quebrá-los quanto os femininos – apesar de estarem aportados em características diferentes e, claro, também serem culturais.

Outra coisa que me ajudou bastante foram os caras que namorei e fiquei nessa vida, sabia? É perigoso isso, de colocar na mão dos outros uma auto-aceitação, mas eles me ajudaram: quando eu era adolescente eu me achava feio demais, pensava que ninguém nunca ia gostar de mim. Então essas experiências me fizeram ver que era bobagem o meu pensamento, eu ia achar alguém que ia gostar de mim sim, do jeito que eu fosse, branquelo ou tatuado, magrelo ou malhado. E achei – e tenho achado. Com certeza não tenho e nem terei o “corpo ideal dos filmes e revistas”, mas as pessoas não têm tesão só nesse tipo de corpo – ainda bem.

As últimas quebras de ideal de beleza masculina acabaram distorcidas, especialmente no meio gay. Se antes o padrão era o cara ser fortão e depiladinho, conseguimos mudar isso e destacar e dar valor ao homem peludo e barbudo e gordinho, por exemplo. Mas tenho vários conhecidos que começaram a tomar medicamentos pra nascerem pêlos em seus rostos e peitos, o que acho uma medida invasiva e não muito saudável em nome de beleza física. Poxa, o que queríamos desde o começo era incluir, não excluir! Mas foi o que aconteceu, criou-se um outro padrão de beleza, tão opressor quanto aquele contra o qual estávamos lutando contra lá atrás. Todos os dias alguém vira pra mim e pergunta: “porque você não deixa sua barba crescer?

E outra: que delícia ter um registro tão completo de si mesmo para olhar no futuro, não é? O tempo vai passar, meu corpo vai mudar, e é legal lembrar com mais detalhes como ele um dia foi. Já disse antes (nesse texto aqui) que envelhecer é o grande elefante branco da comunidade gay. Nada contra quem fica por aí brigando sobre qual seriado de TV ou cantora pop é melhor, gastando horas do dia decorando coreografias de clipes. Nada contra, mesmo. Eu participo de tudo isso em algum nível também. Mas espero sinceramente que essas mesmas pessoas estejam também buscando algo a mais da vida: que queiram se conhecer mais, se desenvolver mais, entender melhor de onde vem suas vontades e desejos e conceitos. Que reflitam um pouquinho sobre a vida, a morte. Conseguir ser feliz consciente da velhice, da doença, da morte e da solidão é o grande desafio da humanidade – gays não estão fora disso. Sair do armário para si e para o mundo pode ser muito doloroso, mas não quer dizer que a partir disso é tudo festa. Sei lá.

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Sobre o vídeo

Na conversa com Rodrigo, falamos sobre muitas coisas: primeiro amor, primeiro sexo, sair do armário para a família. Mas a primeira pergunta foi a mais complicada: “o que é ser gay para você?”

Ao mesmo tempo que não é nada, ao mesmo tempo que encaro ser gay como apenas uma das minhas características, sinto que ela define toda a minha vida. Não é só minha sexualidade, é meu lifestyle e é a minha luta. E aí a conversa foi para a existência da tal “cultura gay”, que eu acho que não devia existir – ela é elitista demais, ao meu ver. Ser gay é “só uma das” característica da pessoa, ela não necessariamente compartilha interesses e características com todo o grupo além dessa. É difícil rotular a cultura gay: qualquer item que você usar (um certo comportamento, uma certa roupa, um ou uma representante) vai ter alguém pra gritar: “ei, eu discordo!”

O que há por trás dessa galerinha que se acha superior por não parecer gay, os tais “discretos”, é essa imagem irreal de que “os gays” são iguais. Mas o que chega da comunidade gay para fora dela não representa todos e nunca representará. Os pacotes midiáticos (livros, revistas, séries, programas de TV) vendem estilos de vida. E nossa sociedade é muito machista, os pacotes midiáticos mainstream vendem sempre a ideia que todo gay odeia futebol, é afeminado, usa rosa e couro, curte boate e Rihanna – vende-se a ideia de que pra ser gay você é, automaticamente, menos homem. Logo, o cara cresce achando que se ele gosta de futebol ou não ouve Rihanna ele é “menos gay”. E essa conclusão é, certamente, uma das que mais causa atraso nos nossos avanços de direitos civis. O gay que dá a cara a tapa é o que causa as mudanças: somos diferentes, mas estamos no mesmo grupo, pessoal. Precisamos ter consciência que, de um jeito ou de outro, um sempre representa todos.

Pensando nisso, lembrei desse caso que conto no vídeo, dos HSH, homens que fazem sexo com homens. O termo foi criado nos anos 90 para que as medidas de contenção da AIDS e outras DSTs não ficassem restritas a grupos por orientação sexual. Mas vamos lá: todos os gays são diferentes entre si, a única coisa em comum entre todos é atração por outros homens, e aí existe um grupo que faz exatamente a única coisa que é comum a todos os gays, mas não se identifica como gays! Percebem como isso é maluco? Os caras que selecionam essa opção nos formulários acreditam, de verdade, que o sexo com outros homens não os tornam gays. Tenho dúvidas: até onde isso é apenas “fluidez sexual” ou apenas preconceito de gente que acredita, mais que ninguém, nos pacotes midiáticos.

Enfim, esse texto já está muito mais longo do que era para ele ser originalmente. Quem quiser continuar no assunto, recomendo os textos abaixo:

Não sou e nem curto afeminados

O que você pode aprender com Brendan Jordan

Por que alguns gays precisam de likes e elogios demasiadamente?

Por que achamos que ser magro é bonito (Super Interessante)

Fernanda Young lista os motivos que a levaram a posar na Playboy (O Globo)

Projeto promove debate sobre aceitação gay (O Tempo)

Empresas que não gostam de gays não merecem o meu dinheiro

Os 17 melhores projetos de nu masculino

Introdução

É super, super comum ver mulheres reclamando de filmes pornôs. A esmagadora maioria deles é feito de homens para homens e, por isso, não são fiéis à realidade: mulheres não gozam tão facilmente quanto nesse tipo de filme, pra citar apenas um exemplo. E se esses vídeos fossem apenas entretenimento, tudo bem, mas todos sabemos que eles ultrapassam um pouco isso por serem o primeiro contato de muita gente com sexo. E essa objetificação da mulher nos pornôs é internalizada por vários homens, que vão e levam a vida achando que a realidade é assim.

Sinto que com gays é a mesma coisa. A grande maioria dos filmes pinta um cenário em que ficar de quatro é a única posição existente, em que sexo oral diz respeito apenas ao pênis, em que o passivo da relação sempre gosta de sentir dor ou ser humilhado, que todo gay é sarado e de cabelo liso, que todo cara gosta de gozada na cara, que todo entregador de pizza é gato – e por aí vai.

Mas apesar de tudo isso, devemos entender que a construção da identidade gay (do jeito que conhecemos hoje) está intimamente ligada à produção pornográfica. É complicado admitir isso, pois já somos um grupo que sofre muitos preconceitos e um dos principais deles é o de ser chamado de promíscuos – uma generalização tão errada quanto falar que todos os heteros são castos e virgens.

É que quando o movimento homófilo* começou nos anos 1950, o governo dos EUA não via diferença entre manifestos por direitos, publicações eróticas e fotografias pornográficas. Tudo era considerado ilegal e foram os pornógrafos que mudaram esse cenário por debaixo dos panos. Eles conheciam as restrições legais bem o suficiente para saberem como burlá-las e tinham dinheiro para enfrentar discussões públicas sobre obscenidade (o que acontecia bastante, já que trocar material considerado pornográfico dava até prisão).

*Homófilo: no início da luta pelos movimentos LGBT nos EUA, os líderes tentaram adotar o termo “homófilo”, por considerarem que o termo “homossexual” dava ênfase apenas ao lado sexual da atração por pessoas do mesmo gênero, enquanto “homófilo” frisava o amor.

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Uma das revistas de pose

No meio dessa bagunça toda de direito civis e confusões recorrentes sobre conceitos (tinha hetero na época que achava que se uma mulher o chupasse isso fazia dele gay!), as organizações homófilas tinham as suas publicações (a maioria com tiragem bem pequena), mas os pornógrafos criaram as chamadas “revistas de pose”, como Physique Pictorial e Tomorrow’s Man. Afinal, eles eram proibidos por lei de enviar revistas pornográficas pelo correio, então editores vendiam fotografias de corpos musculosos com pouca ou nenhuma roupa com a desculpa que elas serviam como referência a pintores ou desenhistas que queriam praticar o desenho da figura humana mas não dispunham de modelos vivos.

Importante dizer que nessa época, a mídia tradicional retratava os homossexuais como clinicamente doentes, depressivos e criminosos, por isso a pornografia dessa época (que hoje consideraríamos inocente) foi tão importante: ela oferecia um respiro de ar fresco no mundo de gays por todo o país. Homens que estavam no armário ou que moravam em cidades pequenas, fora de centros urbanos, viam esperança numa vida de normalidade e de amor a dois na forma de revistas e filmes de 8mm encomendados pelo correio.

Se você quer um nome pra pesquisar sobre tudo isso procure por Chuck Holmes, dono da Falcon Studios. Outro nome legal é Robert Mapplethorpe, que foi quem tirou a arte gay do gueto e colocou na galeria de arte. Nascido na Nova York dos anos 40, ele foi frequentador da cena sadomasoquista e de bares leather, mas também circulava na alta sociedade artística (foi amigo de Andy Warhol e Patti Smith, por exemplo).

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Sem título (nu frontal ao lado do mar), Wilhelm Von Gloeden, 1900

Mas ele não foi o primeiro a fazer arte com homens pelados, claro. E, na verdade, é complicado saber quem foi. Mas uma outra boa referência é o barão Wilhelm Von Gloeden, que foi um fotógrafo alemão do século XIX, pioneiro na fotografia ao ar livre com o uso do nu masculino. Ele usava elementos da Grécia antiga nas imagens que fazia à partir do ano 1880. Um homoerotismo inocente mas, certamente, à frente de seu tempo.

Então da capa da última revista Made In Brazil até a coluna Hot do blog Papelpop (para a qual eu já escrevi durante um ano, inclusive), todo mundo deve um pouquinho a todas essas pessoas citadas aqui. Por isso mesmo quis fazer essa introdução tão longa pra contextualizar um pouco a coisa: todos os projetos de nu masculino são legais e válidos, mas só existem por causa de milhares de pessoas que vieram muito, muito entes deles e os tornaram possíveis.

Mas chega de falação, vamos para a lista! E se você conhece algum projeto legal que não está aqui, deixe nos comentários do post!

Chicos
O projeto é uma mistura interessante de conceitos e corpos: gays comuns são fotografados nus e questionados, em vídeo, sobre a relação que têm com seus corpos, sua sexualidade e primeiras experiências. Além do site, já gerou exposições e festas, e a ideia dos criadores Rodrigo Ladeira e Fábio Lamounier é transformar todo o material coletado em um livro e um documentário.

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Pornceptual
O projeto de Chris Phillips é pra ser mesmo sobre pornografia, com todas as letras. Mas a ideia é sair do óbvio, é fazer pornografia artística. E é isso mesmo que é feito. Vale muito conhecer e seguir. Além das propriedades online, há a revista Pornifesto, que pode ser comprada aqui.

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Snaps
O fotógrafo peruano Gianfranco Briceño criou a Snaps Fanzine via financiamento coletivo: ele mesmo diz que era para ser um portfólio, um zine de amigos posando, mas a repercussão transformou o projeto numa simples exibição natural (e menos vexatória) do nu masculino. Lindo, lindo!

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Flesh Mag
“Toda carne interessa”, diz o manifesto desse revista digital baseada no Rio de Janeiro que começou tem 4 meses para dar visibilidade à diversidade dos corpos masculinos para além dos moldes. Os cliques são dos fotógrafos cariocas João Maciel e Rafael Medina.

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Portis Wasp
Esse blogueiro escocês transformou seu Instagram em algo bem específico: ele só faz montagens de pessoas seminuas em cenários de filmes da Disney. Sexy e divertido ao mesmo tempo.

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Original Plumbing
Essa revista sobre a cultura trans está indo para sua 17a edição e sempre convida para as fotos todo mundo que estiver disposto a ser clicado. Aqui não há nu, a revista é, na verdade, sobre lifestyle e com matérias sérias e longas: já tiveram edições sobre selfies e o movimento trans no skate, por exemplo. É interessante para todo mundo relembrar que identidade de gênero não define gostos e nem caráter (e nem orientação sexual!), cada pessoa é completamente diferente da outra.

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Meat
Um britânico e um islandês são os donos dessa revista que já existe há 5 anos. O gosto pessoal dos fotógrafos é critério de escolha para os modelos das fotos das 15 edições de 44 páginas coloridas e não-retocadas.

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Mister Absurdo é o alter ego do ilustrador Mario Gómez, que mora em Madri. Segundo ele, a ideia é mostrar com suas ilustrações que “tudo é possível”.

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Kink Magazine
De Barcelona, os fotógrafos Paco e Manolo já passaram da 23a edição dessa revista física totalmente voltada a nus masculinos e que dá preferência a pessoas com corpos normais: também tem homem perfeitinho e malhadão e com barba, claro, mas são minoria.

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Butt Magazine
Provavelmente a mais famosa dessa lista: a revista nasceu em 2001 e fez das páginas rosas um tradicional fundo para fotos sensuais e matérias bem legais. Na internet, o site da revista tem uma rede social e mapas  com indicações de points gays de grandes cidades.

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The Tenth Zine
Já a ideia desse zine dedicado à beleza negra é “recuperar a cultura afro-descente que a mídia tem nos roubado desde a invenção de Hollywood”, segundo o editor, Khary Septh, que também escreve para a VICE. A foto abaixo é da primeira edição; eles publicam duas por ano.

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Exterface Studio
Aqui não é exclusivamente masculino, mas tem muito homem bonito sensualizando nos ensaios e calendários dos fotógrafos franceses Stéphane e Julien, cujos temas variam muito. O de 2016, por exemplo, é uma revisita à mitologia grega.

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André Flexões
Esse projeto é totalmente independente e totalmente web, mas é legal exatamente pela falta de pós-produção: imagens caseiras de vários tipos de corpos, tudo bem explícito.

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Coitus
Essa famosa revista é all about modelos gatos. Apesar do nome, ela é vendida mais como uma publicação de moda e lifestyle que, necessariamente, um projeto erótico, e suas páginas são bem plásticas.

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Fábio da Motta
Os cliques do Fábio são muito legais, independente de em qual rede você vai segui-lo: de selfies até ensaios com terceiros, o corpo masculino está sempre em evidência de um jeito sexy e bem pouco óbvio.

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Minsoart
Amo esse perfil do Instagram pois ele sempre me faz rir ou refletir: são apenas montagens de coisas aparentemente muito diferentes, mas colocadas juntas de um jeito fluido que fica, geralmente, muito bonito ou, pelo menos, interessante.

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Hello Mr.
Lançada em abril de 2013 por Ryan Fitzgibbon a revista Hello Mr. já está na sexta edição e ficando tão famosa quanto a Butt Magazine, com matérias bem interessantes direcionadas a “homens que saem com outros homens”, como diz na capa. O Instagram deles é bem legal também.

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Se você conhece algum projeto legal que não está aqui, mande nos comentários do post!

Créditos
O uso das imagens do Snaps, Flesh e Pornceptual foram autorizadas pelos fotógrafos; a imagem do Chicos pelos criadores do projeto e modelo; as demais eu peguei direto de cada site ou rede social – se você é dono delas ou aparece nelas e quer que elas sejam removidas, deixe um comentário no post com seu pedido. A maior parte da pesquisa do texto de introdução foi do Marcio Caparica, também usada com permissão.

Por que você não deixa sua barba crescer?

Eu moro em São Paulo tem mais ou menos 3 anos. Nos primeiros quase 9 meses eu estava dentro de um namoro monogâmico. Quando fiquei solteiro, conheci várias pessoas novas e fui pra muitas baladas. T-O-D-A-S as pessoas que conheci nessas circunstâncias me perguntaram no primeiro encontro: “por que você não deixa sua barba crescer?

E no começo eu respondia com toda a paciência do mundo: não acho que fico bem de barba, me sinto estranho, não gosto da textura no meu próprio rosto, minha pele não se adapta bem e fica sempre avermelhada e com muita, muita coceira. Mas nada contra barba e homens de barba, etc.

Mas comecei a perder a paciência. Por que estou justificando minhas escolhas estéticas sobre o meu corpo para uma pessoa que acabei de conhecer?

Pior: por que uma pessoa que acabou de me conhecer acha que tem o direito de me falar que discorda do meu rosto? Sim, pois é isso que está acontecendo. Quem acha que tem direito de chegar na cara de alguém e dar uma opinião pessoal (não requisitada) sobre como ela escolheu levar a vida estética dela? Você não chega para uma pessoa no primeiro encontro e pergunta: por que você não faz outro corte de cabelo? Por que você não perde essa barriguinha? Por que você não apara sua sobrancelha? Por que você não usa aparelho nos dentes?

Enfim, poxa. Perguntar pra alguém de rosto liso o motivo dele não fazer a barba é tão ofensivo quanto chegar pra um barbudo e perguntar o motivo de ele não raspar, perguntar se a barba não o incomoda, se ele não se sente sujo, por quê ele deixou a barba crescer tanto, etc. As pessoas precisam entender que perguntar o motivo de uma pessoa não deixar a barba crescer é uma crítica e pode ser ofensivo. Não façam isso, por favor.

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Gente, qual a necessidade disso?

Mas não tem jeito: eu olho ao redor e todos os gays que conheço curtem barba. Querem ter uma e querem que o cara que eles pegam também tenha. E tudo bem isso! Quem não ama um homem de barba, não é mesmo, minha gente? Mas até que ponto essa escolha estética foi legítima? Ou será que foi imposta?

Não tenho uma resposta. Mas sabemos que o padrão estético masculino é muito limitado; os pacotes midiáticos te vendem que o bom é ser branco, forte e sem pêlos. Então lá atrás, no começo, a luta sempre foi por inclusão. “Você não precisa ser forte e liso, você pode ser como você quiser! Inclusive barbudo! E vamos te amar assim e você vai se amar assim!” E todo mundo se abraçou em praça pública enxugando suas lágrimas nas suas camisas de flanela xadrez.

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Eu no Tinder

Mas o tempo foi passando, e uma coisa é quebrar um ícone estético, outra coisa bem diferente é impôr uma outra estética no lugar. E sinto que foi isso que aconteceu, pelo menos no meio gay. Agora, ter barba é praticamente a única opção aceitável, parece. As pessoas me perguntarem por quê não deixo a barba crescer, no primeiro encontro, prova isso. Os amigos que tomam pílulas para estimular crescimento de pêlos também (sabe-se lá quais são os efeitos colaterais desses medicamentos e quem está receitando isso pra eles).

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Um conhecido postou no Instagram foto da barba recém-feita e recebeu esses comentários. Galera, não é legal xingar foto dos outros, ok?

Ver esse movimento me dá um certo nó na garganta, porque ele é visível e pode ser invasivo no caso dos remédios, mas acho que por baixo tem um monte de coisas invisíveis acontecendo com as pessoas, que tateiam auto-estima, pertencimento, tribos, grupos, auto-aceitação e por aí vai.

(E acho hilário que nas minhas redes sociais tem um cara que na mesma semana postou uma notícia sobre as vendas de lâminas terem caído devido à moda da barba, comemorando e se achando super anarquista e contra o capitalismo, mas aí no dia seguinte postou comemorando que uma marca gringa ia trazer pro Brasil sua linha de cuidados para barba, ou seja…)

A coisa mais frágil do mundo é a masculinidade

Todos nós sabemos que há preconceito dentro da própria comunidade gay contra os homens que são magros demais, ou gordos demais ou que são afeminados demais, por exemplo. Mas se você for barbudo, branco, forte e rico, aí tudo bem, pode ser gay no escritório, na novela, no filme, na série. Tudo uma herança de uma mentalidade machista, de superioridade do macho alfa, de que gay tem que parecer… hetero.

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Enquete que lancei no meu Twitter. Segue lá: @gabrielkdt

Pois é. Posso estar errado (e, no fundo, quero estar), mas sinto que tudo isso é, entre outras coisas, também uma herança do conceito de masculinidade definido por homens heteros, esses que nasceram numa situação privilegiada dentro de uma cultura machista e rejeitam qualquer coisa que pareça “de mulher” ou “de criança” – inclusive esteticamente.

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Cotonetes para homens, sabonetes em formato de granada e um tutorial de como arrumar uma cama masculina

E aí fico pensando a mesma coisa que penso sobre gays que curtem futebol ou que são religiosos: vale à pena? Chegamos a alguma lugar respeitando uma cultura que nos oprime? Ganhamos respeito nos apropriando ou nos afastando dessas culturas? Eu realmente não sei.

Mas sei que barba ainda é um grande símbolo disso, de diferenciação entre homem-mulher, e por isso acho que, em algum nível, a apropriação dela no mundo gay é mais do que apenas estético e diz respeito a imposição de valores. Diz respeito a algum tipo de validação da masculinidade que as outras pessoas insistem em não enxergar em você pelo fato de você ser homossexual, é tipo um “sou gay, mas sou homem, pois tenho barba”. Tudo isso, claro, não acontece de forma consciente.

Mas não sei bem se é isso e, obviamente, se for, não é o caso de todos os gays barbados (escrever longos textos sem nenhuma conclusão é minha especialidade), mas acho interessante colocar a discussão na mesa pois uma parte importante do movimento gay é a liberdade, aquela que te permite ser quem você quiser ser. Então sempre vale se perguntar e refletir: a pessoa que você é ou que está se tornando é fruto dos seus desejos ou do desejo dos outros? As suas vontades e realizações estão vindo de dentro de você ou do ambiente em que você está inserido? Ou do ambiente que você quer estar inserido?

Resumindo: tenha barba e curta barba, mas não seja otário.

Homens de saia

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“Nem todo menino quer ser um soldado”

Há algum tempo mantenho um tumblr inspiracional chamado Dressed Boys. São inúmeras imagens de homens usando trajes que culturalmente dizemos que são apenas para mulheres. Eu seleciono as que eu acho mais bonitas – seja por pura estética ou por algum motivo político mesmo. Por causa desse site, uma jornalista do International Business Times me entrevistou para uma matéria muito interessante sobre o fim dos gêneros na moda. A matéria completa pode ser lida aqui. Mas como muita coisa ficou de fora e eu tinha todas as perguntas e respostas salvas no meu e-mail, resolvi traduzir para português a conversa e colocar aqui.

Laerte na capa da revista Bravo!

Eu amo seu blog. Há quanto tempo ele existe e o que te inspirou a cria-lo?

Obrigado! Eu o criei em setembro de 2011. Aqui no Brasil há um famoso (e genial) cartunista chamado Laerte que, um ano antes disso, tinha decidido posar como mulher na capa de uma revista. Na verdade, ele usava apenas brincos e unhas com esmalte, mas desde então ele começou a falar cada vez mais sobre crossdressing e como esse desejo lhe era comum. Com o tempo, incorporou mais e mais peças femininas e, hoje, Laerte se identifica como mulher. Ela mudou muito da minha própria percepção de gênero e quanto mais eu pesquisava sobre o assunto, mais imagens interessantes eu achava. Então eu quis criar um lugar para colecionar todas, e assim nasceu o tumblr.

Por que esse interesse em imagens de homens usando roupas que não são apenas calças/camisas? Por exemplo, por que você gosta de saias?

Primeiro pois eu acho bonito. É desafiador e sexy de um jeito não-óbvio. Acho que não só mostra que a pessoa está em contato com seu lado feminino, mas na verdade com ela mesma. E a dualidade me atrai também. E gosto de pensar que tudo ao nosso redor é apenas comportamento cultural, ensinado. Como cultura, a gente sempre está fazendo algo não necessariamente por gostarmos, mas pois foi o que aprendemos que é certo. Homens usavam roupas bem parecidas com vestidos e saias na Grécia antiga, por exemplo. As coisas mudaram, mas não se tornou “errado” homem usar saia, é só incomum, a gente pode trazer elas de volta. Eu conheço caras que experimentaram saias e acham que elas são muito mais confortáveis que, por exemplo, um skinny jeans.

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Eu usando salto pela primeira vez

Você acha que o jeito de se vestir dos homens modernos é limitado? Você usa vestido ou saias ou outras roupas femininas, acessório ou maquiagem?

Eu acho que o jeito de se vestir dos homens fica limitado por causa do contexto social. Se um cara vai trabalhar em um escritório mais careta com uma blusa pólo cor-de-rosa, é bem provável que os colegas de trabalho apontem e façam piadinhas com ele, o chamando de gay ou algo assim. Mas se o cara estiver em um show de metal, ele pode usar maquiagem e esmaltes pretos e ninguém vai falar nada. E se você usar salto alto numa Parada Gay o mais provável é que todo mundo te elogie.

Eu mesmo não uso muitas coisas femininas: lembro de ter passado batom em algumas festas, mas basicamente só isso. Mas de vez em quando compro roupas na parte feminina de certas lojas – as peças lá caem bem e têm mais variedades de textura e estampa. As seções masculinas podem ser meio tediosas.

Você mora no Brasil – tudo isso é mais aceitável por aí ou é um tabu como aqui nos EUA? (Eu vivo em Nova York e já morei em Nova Orleans. Aqui é um pouco menos “chamativo” do que seria, digamos, em certas parte do Texas)

É um super tabu. Eu acho que o Laerte está ajudando, fazendo as pessoas pensarem um pouco mais na questão, mas é um movimento lento em um grupo pequeno de pessoas considerando a população do país. É impossível sair de saia por aqui sem ser apontado ou incomodado por alguém na rua pelo menos uma vez. No tumblr, eu deixo aberto o link para quem quiser me enviar fotos que acharem. Mas melhor que isso, tem muitos homens de todas as partes do mundo que me enviam fotos deles mesmos usando saias ou salto, o que é bem legal. Mas reparei que quase nunca são fotos em público, eles estão sempre em casa sozinhos. Aqui em São Paulo, tenho amigos que usam salto e/ou maquiagem na noite, mas não são coisas do dia a dia deles. E é curioso pois no nosso Carnaval é quase que tradicional que homens se vistam de mulher, mas é apenas uma semana por ano e parece que nunca a festa traz discussões profundas sobre o tema – e acho que devia trazer. Nesse ano, por exemplo, tinha um cara vestido de princesa na rua e um grupo de gays passou do lado e mexeu com ele (acho que gritaram algo tipo “que princesa gata!”) e ele apelou, chamando os caras de bichas, viados, e palavras piores! É tão complicado… É muito confuso para heteros, que nunca tiveram que lidar com nenhum problema de identidade de gênero ou orientação sexual, terem que entender de uma vez casamento gay, transgêneros, crossdressing… É muita informação nova, muitas vezes sem nenhuma contextualização ou conhecimento prévio (pois nada disso é conversado por pais ou nas escolas), para quem nunca precisou pensar em nada que não o próprio umbigo. Eles confundem os conceitos, misturam, às vezes são preconceituosos até sem perceber. Você precisa repetir tudo de novo toda hora.

Rodrigo Faro

Você está vendo isso aparecer mais em revistas/blogs que você lê e segue?

Sim e amo isso! Sempre digo que programas de TV e revistas são caixinhas de estilos de vida. Então ter homens de saia nesses lugares ajuda a naturalizar essa escolha de roupas – mesmo que esses ensaios sejam com intuito de ser apenas ambíguo, do cara ainda ser “macho” por baixo da roupa de “mulherzinha”, sabe? De qualquer forma, é um passinho mais perto da formação de uma moda com gêneros menos definidos. E, o mais importante, liberdade e uma economia de questionamentos e dores e dinheiro de terapia para os homens que têm vontade de usar essas roupas e fazem escondido ou nem fazem – pois acham que isso significa que eles são doentes ou necessariamente gays.

Jaden Smith: o filho de Will Smith virou notícia ao aparecer frequentemente usando saia – inclusive no seu baile de formatura, ao lado da namorada

Então, você acha que homens que usam vestidos e saias são gays? Você acha que alguém como o Jaden Smith (que eu acho que é hetero) vai tornar isso mais aceitável.

Eu acho que a maioria dos homens que vemos de saia hoje em dia são gays, mas porque eles estão mais acostumados a brincar com os papéis de gênero, mais confortáveis em serem ousados, e se importam menos com a opinião alheia – eles já passaram por muitas coisas e piadinhas, o que vai ser uma a mais em troca de conforto?

Mas entendo que isso ajuda também a confundir os heteros. Eles pensam: “bom, Bruce Jenner usa vestido, mas ela é um mulher agora! Andrej Pejic se veste como mulher, mas ele realmente parece ser uma. Marc Jacobs usa saia, ah, mas ele é gay”. Entende? Não tem ninguém igual ele usando saia por aí – ainda. Eles sentem que têm algo a perder, como se ninguém fosse respeitá-los nunca mais como um homem hetero se ele passar batom uma vez. Por isso eu posto imagens de famosos no tumblr também: Brad Pitt, The Rock e todos os membros do Nirvana e do Red hot Chili Peppers já posaram usando vestidos e são todos heteros, que eu saiba. Eles mostram que é “ok to play”.

Por que tem tanto gay na música hoje em dia?

A carreira de muitas artistas, como Lady Gaga e Madonna, é marcada por certa fluidez sexual: em algum momento, no mínimo, elas declararam ter ficado com outras mulheres. Apesar de tudo que elas podem ter feito pelos movimentos LGBT, sempre há quem diga que tudo não passa de um golpe de marketing para ganhar base de fãs.

Mas mesmo que tudo isso seja um golpe de marketing, o que esse golpe sinaliza? Que os gays estão de ouvidos em pé, atentos a quem dá valor a eles.

E, de uns tempos pra cá, você pode ter reparado que o número de artistas homens declaradamente gays aumentou bastante no mundo musical. Se no passado o que mais existia eram cantores no armário (como Ricky Martin ou Lance Bass), hoje ser gay e cantor não é um problema (Sam Smith e Troye Sivan são bons exemplos) e tem até heteros cantando contra bullying homofóbico. Você não é mais considerado de vanguarda e nem precisa ser eclético, clichê ou extravagante (para os padrões heteronormativos, digo), como eram Elton John, Ney Matogrosso e até David Bowie.

O que aconteceu nesse meio tempo?

casaisgaysBom, muita coisa. A comunidade como um todo tem sido representada nos pacotes midiáticos cada vez mais – e eles ajudam muito a desmistificar as coisas para as massas. Da primeira sitcom da Ellen DeGeneres até “Looking”, “Orange Is The New Black” ou “Sense8”, passamos por “Will & Grace”, “Queer as Folk”, “The L Word”, “Glee”, “Modern Family”, sem contar a naturalidade em que personagens gays eram apresentados em “Sex And The City”, “Friends” ou até “Buffy”, “The Nanny”, “Os Normais”, “Dawnson’s Creek” e em várias novelas (algumas com beijo, outras sem). Isso sem mencionar “RuPaul’s Drag Race”, né?

Paralelo a isso, a opinião pública sobre orientação sexual tem mudado aos poucos. Novas gerações tendem a ser mais tolerantes, pois são expostas a mais pontos de vista que as gerações anteriores – mesmo as crianças criadas por pais bem tradicionais têm acesso mais fácil hoje a todo tipo de informações. Uma pesquisa da YouGov feita no Reino Unido mostra que 1 em cada 2 jovens entre 18 e 24 anos não se considera heterossexual – eles criaram uma escala de zero (exclusivamente hetero) a 6 (exclusivamente gay) e as respostas das pessoas sambaram muito entre os números. Pois é, podemos estar começando a ver o fim dos rótulos, finalmente.

Reacionários e cristãos fervorosamente tradicionais costumam dizer que hoje em dia existem mais gays no mundo pois nossa sociedade está aceitando “essa doença”, mas creio que é justamente o contrário: na medida que desmistificamos a homossexualidade como algo errado ou do capeta, criamos um ambiente em que torna-se mais confortável ser quem você é de verdade e aí param-se os fingimentos. É impossível medir, mas é capaz que o número de pessoas que se identificam como gays, lésbicas ou trans hoje em dia seja o mesmíssimo de, sei lá, 1890 – mas hoje as pessoas têm mais liberdade de ser quem elas são.

De liberdade em liberdade, não é mais estranho ver casais gays por aí. O casamento entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado em todos os estados americanos em junho de 2015, por exemplo. No Brasil, a união já é reconhecida desde 2013. E o número de famílias LGBT (com ou sem filhos) e de pessoas que se declaram “não-hetero” só aumenta estatisticamente no mundo. Isso, sozinho, já responderia “matematicamente” o título do texto: temos mais gays livres no mundo, logo temos mais gays na música. Talvez.

Mudando de assunto um minuto

Dia desses, a marca de laticínios Itambé publicou em seu Facebook essa imagem abaixo.

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Post no Facebook da Itambé

As pessoas repararam que, ao contrário da esmagadora maioria de imagens da publicidade do segmento, a família retratada é negra. A aceitação da imagem não podia ter sido melhor: só elogios na página. Há uma menina negra que, nos comentário do post, usa a seguinte frase: “Quando não me vejo na publicidade, não compro o produto“. Ela está coberta de razão: se em nosso país 53% da população se declara negra ou parda (segundo dados da Pnad de 2013), não faz sentido ter uma família branca e loira nas propagandas.

De volta ao mundo musical gay

Uma pesquisa Nielsen mostra que as famílias gays gastam mais dinheiro que as famílias tradicionais – especialmente em compras online e livrarias. Quando a pesquisa aponta os hábitos de consumo das famílias LGBT sobre música, a diferença fica ainda maior. Em todos os segmentos de venda, gasta-se mais.

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E o que será que esses gays estão consumindo? Provavelmente não são rappers que falam sobre mulheres e carros importados. Estamos numa fase parecida com esse caso do post da Itambé, ilustrado ali. Lembra da moça que disse que não compra o produto se não se sente representada na propaganda? Pois é. O que gays querem ouvir? Eles já passaram tempo demais ouvindo músicas sobre sensações e experiências que não lhes dizem muito respeito. E se tem demanda, meu amigo, a indústria fonográfica vai dar seu jeito de suprir – para lucrar, é claro.

Isso não torna todos os artistas gays marionetes nas mãos de executivos, apenas indica que eles estavam no lugar certo na hora certa. E a mudança no relacionamento que as pessoas têm com música atualmente também tem a ver com isso. Hoje, é bem mais fácil produzir um disco e ainda mais fácil fazer com que ele chegue aos ouvidos de qualquer pessoa do mundo. Você precisa de cada vez  menos intermediários, algo que era complicado de acontecer se você queria ser artista no mundo tradicional dos CDs e paradas de sucesso – com medo do preconceito, era quase impossível que uma gravadora despejasse dinheiro em cima de um artista declaradamente homossexual que tratasse do assunto em suas músicas – perceba que artistas gays do passado falavam bem pouco do assunto em suas canções. Essa facilidade de distribuição casou bem com a demanda gay por músicas que os representasse e com um público que liga cada vez menos se o artista que ele curte é ou não homossexual.

É bem provável, por exemplo, que Adam Lambert não fosse ter uma carreira do tamanho da dele se tivesse se lançado no final dos anos 1990. Já hoje, há toda uma nova geração que se identifica com o que ele tem pra dizer, tem sede de ouvir o que ele tem pra cantar e consegue se conectar com ele muito mais diretamente. E é por isso, também, que ao invés de um disco acústico de baladas, Madonna ainda está fazendo clipes pegando homens e mulheres na pista de dança: ela alcança muito mais gente assim – não por coincidência, o tal clipe é o com mais visualizações em sua conta oficial no YouTube.

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Sam Smith e Olly Alexander

Ainda há na música quem fuja de declarações taxativas (Mika, essa é pra você), mas Miley Cyrus adora falar de sua fluidez sexual (“nem hétero, nem lésbica”) em entrevistas; a Banda Uó tem uma vocalista trans; Shamir já disse ser assexuado e não pertencer a nenhum gênero; e Olly Alexander, vocalista do Years & Years, faz questão de falar que suas músicas foram baseadas nos seus ex-namorados e usa adjetivos no masculino em suas letras.

A orientação sexual dos artistas nunca esteve num momento como o atual, em que ela importa e não importa exatamente nas mesmas proporções – para o público e para os selos.

But who runs the world? Gays. Ninguém entende melhor que eles todas essas fases de auto-descoberta que esses artistas todos estão passando e, pelo visto, ninguém gasta mais dinheiro com música que eles. Em resumo, uma combinação per-fei-ta para o mercado.

Desculpo porra nenhuma

Nunca tinha ido numa Parada LGBT+ na minha vida e resolvi ir na desse ano aqui em São Paulo, a maior da América Latina. Sempre achei que a festa tomava demais o espaço do protesto, mas mudei de opinião. Achei importante ir pois estamos vivendo tempos tenebrosos. Ainda tenho ressalvas sobre o evento, mas esse texto não é sobre isso. É sobre esse cara aqui.

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Ele estava na Parada com esse lindo cartaz e chamou muito a atenção das pessoas. Ele se chama Clauber Ramos e fez um relato legal da experiência no Facebook dele. Retirei um trecho:

Fui convidado para junto com um grupo de cristãos de várias igrejas estar na parada gay [sic] para uma ação simples: iríamos empunhar cartazes que demostrassem o amor de Cristo por todos que estivessem ali e ao mesmo tempo mostrar a nossa discordância com os pastores midiáticos tem falado sobre o tema.

Nosso lema já dizia a que veio “Jesus cura a homofobia” e minha ação era simples, empunhar o cartaz que escolhi e sorrir o máximo possível. Vários sorrisos em retribuição de muita, mais muita gente, sinais de positivo, muitos abraços dados e recebidos e tantos outros chegavam a chorar quando abraçados e ouvir um simples “Jesus ama você”. […]

Nunca fiz tão pouco e recebi tanta gratidão. […]

Infelizmente eu concordo bastante apenas com a última frase desse trecho e quero explicar o motivo abaixo em tópicos:

1 – O protesto é legítimo, mas tem um (grande) porém

Sim, muito legítimo. Estamos muito acostumados a ver esses pastores famosos vomitando ódio contra gays sempre que é possível, então imagino que há mesmo uma enorme insatisfação nessa generalização que o pessoal do lado de cá faz. Nem todo evangélico é assim, esses pastores representam apenas uma parcela dos fiéis dessa religião. O porém é que representam uma parcela enorme, que elege eles a cargos públicos – e lá, eles querem impôr seus valores pessoais a toda uma sociedade (exatamente o contrário do que um político devia fazer). E quer conversar sobre generalizações? Que tal voltar pra igreja e ensinar quem nem todo gay é promíscuo, doente ou confuso?

Não quero competir, mas quem você acha que é mais perseguido hoje em dia na sociedade brasileira, os LGBT+ (um é assassinado a cada 23 horas) ou os evangélicos (que são donos de meios de comunicação e têm alta representatividade política)?

2 – Errou na escolha do local

Pensa assim: um homem vai numa manifestação feminista com um cartaz escrito “nem todo homem é machista”. Poxa, legal, lindo, a gente sabe. Mas não é a hora nem o lugar, né? A luta não é dele, o evento, o protesto. Ele não tem que ir ~logo ali~ se defender. Imagina uma comunidade que faz uma marcha contra PMs que mataram crianças inocentes e no meio tem um PM com um cartaz escrito “nem todo PM é assassino”. Esse é o meu ponto.

No caso do Clauber e de todos os grupos religiosos que insitem em se apropriar do evento, eles têm que ir é para a igreja deles ensinar o pessoal a não fazer nada que precise se desculpar depois. Foi uma apropriação indevida da Parada, fantasiada de aceitação. Um belíssimo “lavo minhas mãos”. A tradução desse cartaz é: “pessoal, os crentes estão ferrando vocês, mas eu não sou um deles, tá bom?”. Poxa, cara, tinha que vir aqui falar isso? No nosso evento, no nosso protesto, na nossa festa? No final das contas, o cartaz dele é a favor da igreja, não dos LGBT+.

3 – Se você discorda da igreja, o que você está fazendo lá?

Sei que o cara pode frequentar uma igreja ou crer numa religião por acreditar nos valores, quaisquer que sejam e, ao mesmo tempo, ter senso crítico de saber que ela erra feio em algumas coisas. E tá aí criticando publicamente, o que é corajoso e foda. Mas essa é parte da minha crítica também. Se não concorda, não frequente. É fácil demais ir lá colaborar com o preconceito por um lado e depois vir pedir desculpinhas pelo outro.

Pessoas que dão dinheiro para igrejas ou instituições que pregam preconceitos (ou que trabalham para elas) são parte do problema, são coniventes com os atos, têm na mão o sangue de todo gay, lésbica, travesti e trans que foi assassinado por serem quem eram.

Explico: é claro que dá para ser seguidor de uma religião e não ser o agente de crimes, você pode sim se identificar como protestante e nunca ter discriminado ou matado um gay, por exemplo. Mas se você frequenta, dá dinheiro ou audiência para alguém que diz que gays deviam sumir do planeta, isso significa sim que você concorda com isso e que sua grana está indo direto para o bolso dessas pessoas e para esses programas de “cura”, que machucam e destroem famílias. Como eu disse, você faz parte do problema.

4 – Perdão é um conceito relativo

Sendo o perdão um conceito cristão muito forte (pelo menos nesse contexto), aceitar essas desculpas não tira a igreja e nem esse cara da zona de conforto deles, pois é um perdão nos termos deles. E outra: opressores históricos (de ditadores assassinos a líderes religiosos que causam problemas de saúde pública) não devem ser perdoados – e sim responsabilizados por seus atos.

A palavra “igreja” entre aspas numa cartolina e um cara querendo aparecer na mídia não zeram todos os retrocessos que religiões e religiosos causaram e causam a mim e meus amigos – mas, óbvio, eu sei que nem o cara empunhando o cartaz achou que zerava. A questão é que não faz nada. Na prática, essa cartolina e nada são a mesma coisa. É só um cristão querendo aparecer. E conseguiu.

Tire seu Jesus da minha luta, por favor

Desculpem, mas eu não quero Jesus Cristo na minha luta por direitos civis e humanos. Nem contra, nem a favor. E nem Maomé, Buda, Moisés, Shiva, Oxum e sei lá mais quem. É muita utopia minha, mas são assuntos que precisam co-existir, mas não deviam estar relacionados. Se há liberdade de escolha religiosa, deve haver também de orientação sexual. E ponto final. Religiosos precisam aprender a ficar na deles, precisam aprender que suas opiniões não valem mais do que as de ninguém, que seus valores não são superiores ou absolutos, que ninguém precisa da aprovação deles para nada. Ficar fazendo morde e assopra não me convence.

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Amy Poehler no Weekend Update, jornal satírico do programa Saturday Night Live, vários anos atrás: “Essa semana, o casamento gay foi oficialmente condenado por um homem velho, solteiro, usando uma capa”

Um belíssimo exemplo é esse novo Papa que o pessoal insiste em glorificar como moderno. Ele fica só na intenção de reforma, acena que a Igreja precisa se reestruturar, mas fica só no discurso – e os seguidores e a mídia caem na balela. É um cara simpático mesmo, que se diz aberto a diálogo sobre assuntos que a igreja católica sempre foi contra, mas também mantém certa distância. Eu até gostaria de acreditar que mesmo esse pouquinho que ele faz muda a cabeça de algumas pessoas, mas tenho minhas dúvidas sobre isso e sobre a legitimidade (e as reais intenções) dessa abertura de diálogo também.

A religião católica acredita que Jesus designou São Pedro como “pastor” e líder de sua igreja, sendo os Papas seus sucessores e, assim, possuindo total autoridade para governá-la e ensinar/definir pontos dessa fé cristã. Se ele quisesse mesmo mudar as regras, ele poderia. Ao invés disso, em um momento ele diz não julgar os homossexuais e todo mundo aplaude. Mas na hora que a Irlanda legaliza o casamento gay (depois de uma vitória de 62% em um referendo popular), sai uma nota oficial do Vaticano falando que a medida irlandesa é “uma derrota para a humanidade”!

Um amigo fez uma analogia interessante: se enxergarmos o Vaticano como uma empresa, houve um CEO que era muito bom com prospects. Depois veio outro que falava muito dos valores da empresa, e num momento em que o mercado era expandido, não colocou ninguém na cartela de clientes. Agora trouxeram um outro CEO com foco em captação, contrariando o que veio antes dele.

Tudo isso me faz lembrar da minha avó: ela tem uma casa cercada de santos e terços e fica ofendida com piadas de Jesus no Natal e até com meus tios que imitam o Padre Quevedo (sério, eles imitam muito bem e é hilário). Certo dia, ela me disse que parou de ir às missas de sua igreja: “Todo dia na televisão falam desses padres que estão abusando de crianças, você viu? Como que eu vou lá pedir perdão pra alguém que tem pecados piores que os meus? Vou não. Continuo aqui com minha fé e meus santinhos, mas aqui”.

Eu gostei muito de ouvir isso dela. Se há crenças e desejo real de espiritualidade, o lugar físico onde você está tem bem pouco a ver com isso. Se seu desejo de fazer o bem é real, você não precisa do aval de nenhuma superioridade e muito menos dividir com eles seu dinheiro ou passado. Como disse Chagdud Tulku Rinpoche (um lama da escola budista), se alguém precisa de religião para ser bom, a pessoa não é boa, é um cão adestrado.

Homofobia é um negócio milionário!

Eu entendo (e muito bem) a intenção do cara lá na Parada – e não julgo nem um pouquinho aquelas pessoas LGBT+ que acharam o ato dele comovente. Sei que a relação dos LGBT+ com religião é muito complexa, mas há muito mais na luta que respeitar os evangélicos que nos respeitam. O respeito pelos LGBT+ é o mínimo que estamos pedindo! Esse era um cartaz escrito “não faço mais que a minha obrigação”, entende?

Quando você está andando a pé e um carro pára e te deixar atravessar na faixa de pedestre na frente dele, você agradece ao motorista? Agradecendo ou não, todos nós sabemos que ele não está fazendo nada além do que a obrigação dele, inclusive perante a lei.

Marcelo Zorzanelli escreveu bem nesse texto:

O que faz o sucesso de um pastor? Um rebanho grande, uma multidão disposta a tudo para expulsar de suas vidas o que identificam como o demônio, o diabo, o tranca-rua, o coisa-ruim, aquele que atrasa as coisas; o “inimigo”, enfim. O inimigo tem as faces de sempre: as drogas e o álcool, o adultério, o vício no jogo, o fracasso financeiro, etc etc.

E qual o novíssimo inimigo? O gay. O motivo? Eles dizem que é aquela citaçãozinha mixuruca de Levítico que eles levam ao pé da letra, mas não é bem isso.

É para, entre outras coisas, poder oferecer a cura disso que eles falam que é doença – e, claro, cobrar alto por isso. Esses pastores que estão sempre na mídia vivem de incitar preconceito e ódio contra pessoas como nós, exatamente para depois venderem a solução. O que a mãe, que foi ensinada na igreja que ser gay é ruim, faz quando o filho dela se revela gay? Manda pra igreja consertar. E eles cobram baldes de dinheiro para isso. Entre terapias de conversão, paninhos milagrosos, águas abençoadas etc. Tem muita gente que acredita e que vai pagar. E tem muita gente que vai sofrer. E enquanto fiéis pagam e sofrem, esses pastores agendam viagens internacionais, constroem templos megalomaníacos, compram emissoras de rádios e TV, alisam o cabelo no salão mais caro da cidade.

Não é à toa que a pesquisa Ibope sobre o assunto (feita em 2012) mostra que 24% dos brasileiros dizem que se afastariam de um colega de trabalho caso descobrissem que ele é gay. No mesmo estudo, 55% se colocaram contra a união de pessoas do mesmo sexo.

Conclusão

Ninguém nasce preconceituoso, o ódio é ensinado, é passado de geração em geração como um relógio de ouro que ficou de herança do bisavô. Alguém precisa parar de passar isso pra frente. E são as religiões e seus religiosos os maiores agentes desse ensinamento de preconceitos e discriminações.

Estamos vivendo em tempos estranhos. Ao invés das pessoas verem uma coisa e pensarem “bom, isso aí não é pra mim”, elas pensam “isso aí não devia ser pra ninguém”! É perigoso demais isso.

Eu só queria que todo mundo colocasse na cabeça que a gente não chega a lugar nenhum respeitando o opressor, de cabeça baixa pra ele ou batendo palma quando ele nos joga migalhas.

A ideia do cara e do cartaz é legal sim, mas – para usar uma expressão bem católica – de bem intencionados o inferno está cheio.