Aconteceu e, portanto, pode acontecer de novo

(Crédito da imagem: AFP)

Semana passada eu fui pra Munique, a cidade onde o nazismo começou, e desde então fiquei pensando em escrever sobre minha visita ao NS-Dokumentationszentrum Muenchen, o museu de documentos. O que mais me chocou foi como tudo parecia familiar com a gente.

Com aqui, com agora.

Um texto falava assim: “Políticos e imprensa nacionais e internacionais trataram esse movimento de violência com uma quantidade muito grande de respeito. Foi por isso que o partido [de Hitler] chegou à importância que tem hoje na Alemanha. Agora, nenhuma quantidade de silêncio ou distância ou desinteresse é suficiente. Precisamos enfrentar esse movimento”. (Lida Gustava Heymmann, em 1931).

Um dos que mais me chamou atenção foi um do próprio museu, ao lado de manchetes de jornais da época: “O apoio das massas levou Hitler ao poder, mas a responsável pela indicação de Hitler ao cargo de chefe de governo da Alemanha foi a ‘camarilla’ [termo que, literalmente, significa grupo de vampiros] do presidente Paul Von Hindenburg, um grupo de semi-realeza formado por militares conservadores e elites industriais, administrativas e agrícolas. Seus interesses eram de um regime totalitarista desde 1930 e acharam que juntar Hitler ao seu movimento ajudaria a alcançar seus objetivos”.

Parece bem familiar, não é?

E a parte mais familiar de todas: “O caminho do partido nazista até o poder não foi uma inevitável e triunfante marcha. As medidas defensivas do Estado e a resistência dos civis nunca se encontraram. A república falhou pois as pessoas não se opuseram ao extremismo de maneira vigorosa o suficiente.”

E todo o resto está lá, documentado.

Os jornais e panfletos nazistas funcionavam como as fake news de WhatsApp; as milhares de publicações – como essa acima da Lida Heymmann – eram os textões de Facebook.

Sério, a oposição tinha conteúdo DEMAIS dizendo “gente, esse cara aí vai dar ruim pá nóis, alguém precisa impedir”, mas nada aconteceu. Estava fácil manipular o povo devido à crise e ao desemprego, principalmente pois os nazis eram colados com a galera com grana, os empresários donos dos meios de produção, donos inclusive dos meios de comunicação, da imprensa – igualzinho esse amor que vimos com Temer e vemos agora entre bolsofilhos e juiz Moro com Silvio Santos, Ratinho, Record etc, e também a lambeção de saco de empresários como o dono da Riachuelo e o véio da Havan, para citar só alguns poucos exemplos.

O movimento nazista teve seu nascimento e queda num período de, sei lá, 20 anos. Analisando o que tá rolando aqui desde o impeachment da Dilma – passando por Temer, prisão do Lula e Bolsonaro – a gente deve estar no ano 5 aqui no Brasil. Conversei sobre essa teoria com um alemão de ascendência turca que é professor de diversidade (!) e ele: “Acho que por aqui estamos entrando no ano 2, de novo. As minorias avançaram nos últimos anos e isso fez o homem branco cis hétero se sentir ameaçado. Só que esse homem ainda é o dono do capital e da imprensa, não é?”

Acho que meu choque ao traçar esse paralelo de maneira tão clara tem a ver com outras coisas também. Eu tive uma educação privilegiada, numa escola boa, e a gente foi ensinado que era “daqui pra frente”: as aulas de história e estudos sociais apresentavam o enredo do mundo e da humanidade de uma forma quase que otimista demais. Era como se nos dissessem: pronto!, acabou o fascismo, acabou o comunismo, caiu o muro, acabaram as guerras, agora é globalization, é tecnologias avançando, então agora vai, uhul!

Só que não foi, pois não é assim que as coisas funcionam. Não acontece um monte de coisa ruim e aí para de acontecer coisa ruim e aí só acontece coisa boa. A história é contínua, mas não é linear. Hoje, em 2019, tem gente que acredita em terra plana, que não acredita em vacina, que duvida do holocausto (mas da existência de deus, infelizmente, todo mundo tem certeza e mata em nome dele, né?). Daqui a pouco, acho que a gente vai ter que começar de novo a falar que depois de cagar tem que lavar a mão…

Quando na Alemanha, também visitei o campo de concentração de Dachau e obviamente foi super pesado (inclusive, lá me caiu a ficha de que as fotos que existem dos campos eram feitas pelos nazistas para propaganda – ou seja, as condições reais eram ainda piores), mas o tal museu de documentos mexeu comigo de um jeito diferente. Pois parecia que eu tava lendo era sobre o Brasil desse ano e sobre como, apesar de tantos avisos e campanhas e celebridades e #EleNão e brigas em família, o bonde do fascismo está andando livremente por aqui. E com aval dos poderosos.

Eu não queria soar alarmista e exagerado nesse texto aqui, mas o que esse museu me mostrou com bastante clareza foi exatamente isso, que o medo de soar alarmista e exagerado ajudou muito em tudo que aconteceu.

“Aconteceu e, portanto, pode acontecer de novo” (Primo Levi, 1966)

Cristal da Tok & Stok

Esses dias que eu fui comprar um cristal. Depois de ser pai de planta, agora tô virando pai de pedra, veja só. Mais vilamadalener impossível. Não tem significado nenhum, eu só achei que ia combinar com a sala mesmo. Tô aqui pela aesthetics.

“Essa pedra é linda, né?”, diz a moça da barraca, “essa traz prosperidade”.

Puta que pariu.

Moça, sem prosperidade é mais barato? É só um pedaço de minério, tava embaixo da terra e no meio da lama até uns minutinhos atrás, vamos ser honestos.

Eu tô escolhendo pela cor. E essa pedra aqui orna melhor com o livro de foto de homem pelado que eu tenho na mesa de centro. E é isso, e só isso.

Me lembrou do meu pai, quando minha irmã mais nova perguntou do que era feito o arco-íris e ele deu a “explicação” bíblica: ninguém sabe, é um sinal de “deus”. A parte de ser um fenômeno ótico e meteorológico que separa a luz do sol em seu espectro quando o sol brilha sobre gotas de chuva? Essa parte meu pai não quis falar, ou não ensinaram pra ele, ou ensinaram e ele esqueceu, ou ensinaram e ele escolheu não acreditar…

Tô com bem pouca paciência para essas palhaçadas ultimamente.

Fala aí uma bosta. Qualquer bosta. E eu te garanto que lá atrás tem religião e “deus”. Aborto ser ilegal? É por causa de gente que acredita em deus. Justificativa para a escravidão? Gente que acredita em deus tinha várias. Maconha ser legalizada? A tiazinha é contra porque o pastor dela falou que é do capeta. O não avanço ou o retrocesso de direitos LGBT+ e de direito individuais? Gente que acredita em deus. Gente que acredita que o livrinho que ela acha que é sagrado devia ser a constituição, devia ser a lei do mundo e de todo mundo.

Se fosse só o jeca do meu pai, tudo bem. Mas líderes mundiais não podem pensar assim. Sério. Olha ao redor. Todas as merdas do mundo.

Sabe quem é a primeira pessoa que políticos desumanos agradecem quando ganham eleição, que ditadores sanguinários agradecem quando ganham guerras e que atores ruins agradecem quando ganham um Oscar? Sim, deus.

A gente não devia botar num pedaço de pedra a responsabilidade de trazer prosperidade pra nossa vida. Nem em deus. Nem em oração. Nem em signo. Nem em cartas. Nem em nada, digamos, invisível. Não acredite em deus, acredite em você, nas suas atitudes, no seu esforço e potencial. Tome a responsabilidade das suas decisões e as consequências delas, sem inventar essa desculpa de que foi “assim” por causa de quaisquer forças externas milagrosas.

Problematização chique essa, comecei num cristalzinho barato da feira e tô aqui, basicamente, xingando toda a estrutura de crença da raça humana. Mas é que começa nas pequenas coisas. E é contextual – se você tivesse nascido em outra época, em outro país, ia acreditar em alguma coisa diferente.

Enquanto as pessoas acreditarem no que não podem ver – deus, energias, karma, signo, céu, inferno – e desconsiderarem o que, de fato, existe – minorias, refugiados, poluição, dados e pesquisas – vai continuar dando bosta.

Você não consegue mais nem decorar sua casa sem alguém te vendendo “energia” junto de um pedaço caco de vidro.

Falando nisso…

A autora Guinevere Turner foi muito generosa compartilhando em um texto na revista New Yorker como foi sua infância crescendo em um culto. Ela nasceu em uma fazenda em que todos os moradores viviam isolados do resto do mundo e compartilhavam uma crença em comum: em uma determinada data, alienígenas de Marte desceriam à Terra e levariam os escolhidos para morar no planeta vermelho. Os escolhidos, segundo os profetas, seriam as pessoas que vivessem suas vidas de acordo com certos valores.

Parece uma maluquice (e é), mas Guinevere explica de forma muito simples: “eu nasci ali, foi o que me foi ensinado, eu não tinha outra escolha, apenas acreditar”. Todo o ambiente que a cercava acreditava nisso, então é claro que ela achava que era verdade.

Não há diferença nenhuma em acreditar nesse discurso dos aliens de Marte e acreditar em virgens que têm filhos, mares que se abrem ou barcos que cabem todas as espécies de animais do planeta (inclusive, atualmente, a estimativa científica é que existam entre 3,5 milhões e 5 milhões de espécies de animais no planeta; estimativa pois os cientistas não conseguiram catalogar todas ainda pois são muitas!).

Se seus pais (primeiras figuras de afeto e autoridade da sua vida) acreditam numa coisa e essa coisa é reforçada por novas figuras de poder, líderes carismáticos, e pela mídia, você cresce acreditando e sem questionar.

O resultado todo mundo já conhece. Bosta, muita bosta.

Silêncio como estratégia de marketing

Com a entrevista de Manuela D’Ávila no “Roda Vida”, da TV Cultura, minhas redes ficaram enfurecidas. Ela foi interrompida sem parar e as respostas que conseguia dar não eram levadas à sério, o  time montado para entrevistá-la mais parecia ter vontade de atacá-la que qualquer outra coisa.

O episódio fez com que muitos pensassem que esse era o motivo de Jair Bolsonaro não ter topado ser entrevistado pelo programa. Que ele não sobreviveria. Mas provavelmente essa era a estratégia dele mesmo.

O “mito” que foi construído em cima dele não foi sobre seus feitos políticos, mas sim sobre sua personalidade. Ser colocado contra a parede iria mais prejudicar que ajudar a sua campanha. Acredito que a estratégia dele será ficar calado até o final ou que, durante esse tempinho quieto, ele está sendo muito bem treinado para sair do casulo com falas muito bem ensaiadas. Não faz sentido ele ter feito tanto barulho antes e, agora, que era hora de ele estar fazendo mais barulho ainda, ele ficar calado.

[Edit: esse texto foi escrito antes de Bolsonaro ter, enfim, topado ir ao Roda Viva. Entretanto, hoje, dia 23/08/18, saiu a notícia que ele não participará de mais nenhum debate presidencial]

É uma estratégia: nos momentos de silêncio, você aproveita para contabilizar a impressão que você deixou. O que estão falando de você, o que acreditam que você vai fazer e, só aí, você aparece – tendo absorvido todo esse feedback gratuito e se repaginado de acordo com as demandas. Beyoncé faz algo parecido há anos.

Obviamente não estou comparando Beyoncé com Bolsonaro, bom deixar claro. Eles têm cabeças bem diferentes e trabalhos que não preciso nem comparar. Mas eles são bons personagens para exemplificar o silêncio como estratégia de marketing e de (re)lançamento.

A cantora posta muito no Instagram, por exemplo. E, no começo de sua presença na rede social, ganhou seguidores com a estratégia de postar por lá os looks que ia usar em shows e tapetes vermelhos, antes que veículos de mídia a fotografassem. As fotos são sempre bem posadas, tratadas no Photoshop, todas sem legenda, o perfil não segue nenhuma outra conta – nem o perfil do próprio marido – e não tem nenhum textinho de descrição.

Deixando o fanatismos de lado, Michael Jackson era a pessoa que mais trabalhava a ideia de que ele era o Rei do Pop, apesar de sua importância e suas vendas terem caído ao longo de sua carreira, andando ao lado de suas excentricidades. Beyoncé faz a mesma coisa, mas ao contrário: o silêncio não é exclusivamente para prestarmos atenção nas músicas – como argumentam alguns fãs – mas faz parte de uma boa estratégia para a manutenção da imagem imaculada de diva que ela se propõe e quer manter para os fãs – que ao mesmo tempo que a celebram, também demandam essa manutenção isso dela.

Ela nunca vai ser mal interpretada se tudo que ela expressa – no caso, através da música e dos clipes – é pensado com muita antecedência e por várias pessoas; ela nunca vai dar uma bola fora ou se contradizer em uma entrevista se ela não der entrevista alguma. Essa falta de deslize ajuda a construir o mito. Foram os deslizes, digamos assim, que fizeram a coroa de Michael Jackson ruir quando ele ainda estava vivo.

Parece inovador, mas não é uma novidade.

Em 2014, a rede de fast-food Taco Bell lançou seu próprio aplicativo de delivery e, na mesma semana, fechou suas redes sociais, parando de postar em todas elas desde então. As redes já voltaram a ser atualizadas, mas o golpe publicitário foi perfeito: se você quer nos conhecer, nos conheça experimentando nossos produtos – e não ouvindo nossas propagandas sobre eles.

O Snapchat tinha uma estratégia similar um tempo atrás: quando o aplicativo estava no auge de crescimento, seu Facebook tinham apenas as notícias antigas sobre o lançamento da start-up, mais nada. Em contrapartida, o Twitter era muito ativo, mas sem nenhum post institucional.

Ao invés de tweetar sobre o lançamento de um filtro ou algum conteúdo especial, a conta do Snapchat buscava por pessoas que já tinham tweetado à respeito das novidades de forma orgânica e, aí, simplesmente dava RT. A estratégia deixava claro que a experiência do aplicativo acontecia apenas dentro dele, em nenhum outro lugar.

Isso tudo tem um nome: marketing silencioso. Em 2012, essa era a tendência que o futuro nos reservava, lembra?

Primeiro você tem que fazer perguntas e ouvir em silêncio o seu mercado-alvo (sejam eles clientes, fãs ou eleitores) para descobrir o que eles querem. E então oferecer exatamente isso a eles, do jeitinho que eles querem consumir. Não é coincidência que o empoderamento feminista negro das Beyoncés e a homofobia conservadora machista militarista dos Bolsonaros aconteçam ao mesmo tempo. São demandas de mercado da nossa sociedade de consumo, também polarizada. Quando você lança no mercado um produto que vende, você insiste nele. Se não vende, você passa para o próximo.

Outro ponto importante é fazer marketing por nicho, micro-targeting, de um jeito que passe quase despercebido. A gente acha que um candidato ou uma marca estão sumidos, mas será que estão mesmo? Eles podem estar falando, nesse minuto, com milhares de pessoas, mas fora da sua bolha, abaixo do seu radar. Geralmente antes de você ver o outdoor, já tinha um monte de gente no Instagram usando o produto, mas você não seguia nenhuma das pessoas escolhidas. Você só recebeu a informação quando chegou no outdoor, quando chegou para as massas. É igual.

Na publicidade, sabemos que gritar com o consumidor não funciona mais. Ele quer mais do que isso, mas ainda tem muita marca e agência insistindo em gritar mais alto que o concorrente ao invés de criar um jeito diferente de falar sobre si. Ouvir é um bom primeiro passo nesse sentido: antes de lançar uma propaganda (ou um disco ou uma campanha eleitoral), o que estão falando de você? Com isso em mãos, você se programa melhor para enfatizar aquilo que estão falando mais e falando bem e evitar repetir aquilo que estão falando menos ou mal.

Funciona. É assim que marcas, autores, políticos, diretores e artistas “sempre acertam” e se tornam lendas, mitos, divas, best-sellers.

Fãs e eleitores odeiam ser vendidos, mas gostam muito de comprar – eles são, acima de tudo, consumidores, seja de produtos, discursos ou ideias. Com empatia e algum tipo de vínculo emocional, você basicamente consegue vender o que quiser para quem quiser.

É como dizem: se o coração quer comprar, a cabeça vai junto.

 

Outrage: enrustidos no Congresso – e não é só lá

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O ativista e político americano Harvey Milk falava há muitos anos, lá nos anos 70, que o que era mais importante para o avanço de políticas de inclusão para minorias sexuais era, na verdade, algo simples: sair do armário. Deixar que seus familiares e amigos e colegas de trabalho saibam que você é gay é importante para que a formação da imagem que essas pessoas têm da comunidade gay seja mais ampla, para que elas saibam que quando elegem alguém que é contra gays, está elegendo alguém que é contra você.

Mas e se esses políticos homofóbicos forem, na verdade, gays no armário?

Em troca de poder e de uma carreira estável e longa e recheada de dinheiro, muitos políticos americanos se passam por conservadores bem casados, religiosos e tradicionais. É sobre isso o documentário “Outrage“, disponível na Netflix e também no YouTube.

O inferno que essas pessoas vivem em suas vidas privadas deve ser imenso pois é impossível ser uma pessoa pública e estar no armário ao mesmo tempo. Como é falado no documentário, a pessoa vive em dois universos paralelos: por ser gay mas ter uma família pública, o cara não pode conhecer outro cara em situações comuns e ter um relacionamento, então acaba caindo para o lado mais obscuro do meio gay, que é o de michês e saunas e sexo em lugares públicos, como banheiros. O que só faz com que ele odeie ainda mais sua homossexualidade e enxergue esse seu lado com ainda mais nojo.

Os entrevistados do documentário ensinam a perceber as manobras jornalísticas: na impossibilidade de jornais e revistas tirarem políticos do armário (afinal, eles não querem caçar brigar e perder os investimentos milionários que governos fazem em suas páginas com publicidade) usam muitas expressões como “solteiro convicto”, “baladeiro”, “solteirão”. Quem assiste às séries “House of Cards” e “Scandal” já viu histórias parecidas retratadas ali: trata-se de um ambiente tão conservador que parece haver um limite de sucesso profissional possível caso você seja gay. Entretanto, por baixo dos panos, as coisas são bem diferentes: um dos entrevistados chega a dizer que se somarmos políticos com os membros de suas equipes, Washington tem mais gays que São Francisco.

É assustador e, com certeza, algo que acontece também no Brasil – e essa parte foi a que mais me deixou triste, a de que além de congressistas no armário, existem chefes de gabinete e os vários outros empregados de campanha que são gays e trabalham para candidatos abertamente contra seus direitos. É por isso que nunca vou me envolver em nenhuma campanha política, por exemplo, nem que eu esteja desempregado e seja a última vaga. Políticos mudam de lado com o vento e eu me sentiria responsável por todas as decisões tomadas por uma pessoas que ajudei, de alguma forma, a chegar no poder.

(Não preciso nem ir muito longe: todo mundo que é alguém em Minas Gerais sabe, por exemplo, que Antônio Anastasia – o vice de Aécio Neves no governo mineiro e, posteriormente, eleito governador – é gay. Mas ai de quem citar isso em alguma notinha de jornal! Os alunos de direito da UFMG pra quem ele deu aula sabem. Os jornalista da imprensa mineira sabem. Já teve até blogueiro listando ele como ícone ativista (e botando lenha na fogueira falando que ele, nas rodinhas de amigos, usava a expressão “meu bofe” quando se referia com humor a Aécio). Mas foi só o cochicho subir um pouco de patamar que tudo mudou: o fato dele ter atuado como ativista ligado ao Movimento Gay de Minas (MGM), por exemplo, foi apagado de sua biografia na Wikipedia e sumiu do site da organização quando ele se tornou o candidato ao cargo de governador. Por isso foi estranhamente irônico que, no Twitter, a hashtag no dia de sua posse fosse #AssumeAnastasia).

Como dito no documentário, a sexualidade de pessoas públicas nos interessa? De forma pessoal, não. Mas interessam no caso de políticos, pois eles legislam sobre a vida de outros – e se dizem construir suas plataformas de campanha baseadas em seus valores pessoais, precisamos conhecê-los. Se quem eles são no âmbito pessoal e profissional são pessoas diferentes, precisamos sim saber!

Se um político que é contra casamento gay ou adoção por casais homossexuais dorme com outros homens mas finge ser um hetero casado e temente a Deus, não me interessa que tipo de tipo de homem ele pega, que posição ele curte. Me interessa saber porque ele está legislando contra seus próprios valores, contra suas verdades, ou o motivo dele achar que esses assuntos não têm nada a ver com a vida dele.

O que estão oferecendo em troca?

Quanto está valendo essa hipocrisia?

Não sou nem curto afeminados

Fiquei alguns dias organizando as ideias desse texto – era algo que queria muito escrever sobre. Com o tal beijo gay no capítulo final da novela “Amor à Vida”, achei apropriado publicar e adicionar o assunto a ele. Imagino que as palavras abaixo estejam cheias de erros técnicos – não sou estudioso de psicologia e sexualidade -, mas acho que meus achismos valem um pouco, então aí estão eles :}

O que é ser gay?
Antes de tudo, qual é o núcleo da homossexualidade? Se sentir atraído por um indivíduo do mesmo gênero que o seu. Todo o resto é comentário.

“Se o cara se veste de mulher mas tem tesão em mulheres, é hétero? Se ele transa com mulheres mas pensa em homens durante o sexo, é gay?”. Pra mim, tudo isso ainda é comentário, cada caso tem suas particularidades. Mas o que importa nesse ponto é o conceito frio de ser gay, que é esse: se sentir atraído pelo mesmo sexo. Fim.

Inclusive deu praticamente isso na pequena enquete que fiz no meu Facebook.

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Gosto muito da resposta sobre identidade social: um médico é um médico, um médico que é gay é um médico-gay. O “um” sempre acaba representando o grupo todo. Que perigo.

“Ser gay não é só se sentir atraído pelo mesmo sexo”, me dizem sempre, “é mais que isso, é um posicionamento, uma identidade, um estilo de vida”. Ok, quais? Nessa hora os que não fogem da pergunta respondem sempre coisas diferentes…

O que é a cultura gay?
O conceito da Cultura LGBT é fácil: é a cultura comum e partilhada por lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. Ok, mas e aí? O que há de comum entre todos os gays além de que eles são gays?

Bom, se eu te perguntar qual é a cultura de Minas Gerais, o meu estado, é capaz de alguém responder na ponta da língua: pão de queijo, Aleijadinho, Carlos Drummond de Andrade. Isso significa que todo mineiro gosta e conhece todas essas coisas? Claro que não. É um estado muito grande pra generalizar todos dentro desses três itens – há muito mais na cultura de Minas.

É a mesma coisa. Ser gay é “só uma das” característica da pessoa, ela não necessariamente compartilha interesses e características com todo o grupo além dessa. Já até escrevi nesse blog sobre gays que não apoiam o casamento gay! É difícil rotular a cultura gay: qualquer item que você usar (um comportamento, uma roupa, um representante) vai ter alguém pra gritar: “ei, eu discordo!”.

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“Aqui é Parada Gay, não a Parada Lady Gaga. Ela não é uma representante para nós. Ela não é lésbica, ela não é gay. Só gostar da gente não te faz parte do nosso grupo. Você é uma mulher hétero, você não sabe nada sobre bullying. Você não sabe o que a gente passa.” Hum, será?

Esse gigantesco grupo que chamam de “gays” é cheio de sub-grupos. Barbies, ursos, emos, poc-pocs, indies, modernos, dykes, tuchas, sapatilhas, mini-lésbicas e caminhoneiras são apenas alguns deles. Por mais plural que isso pareça, cada grupo pode ser muito fechado, o que causa um certo estranhamento.

Não é difícil ver gays falando mal de lésbicas ou de outros gays. Produtos midiáticos (novelas, séries, filmes, livros) acabam sendo propagandas que vendem estilos de vida e não é impossível conhecer negros homofóbicos, lésbicas racistas, gays machistas. Triste, mas é verdade.

E aí que entra todo o straight acting
Dentro do meio gay há um grupo de pessoas que gosta de se rotular “st8 acting”. São gays que se dizem “não parecer gays”. Em teoria, agem como héteros. Já conversei com alguns e eles geralmente citam coisas como “não gosto de boate, não gosto de Madonna, não falo fino, não desmunheco, malho, assisto futebol, bebo cerveja”. Coisas assim. Eles acreditam, mais do que ninguém, no pacotinho que esses produtos midiáticos rotularam como “gay”.

Quando mudei pra São Paulo e falava que era mineiro, muitos exclamavam: “Nossa, mas você não parece mineiro!”. E parecia que estavam no aguardo de um agradecimento meu. É um elogio falar a alguém que ele não parece ser algo que ele é? Como é um mineiro, gente, me digam?

Agora: como é um gay, gente, me diz?

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Quando alguém usa a palavra “gay” em quê você pensa? Resposta certa: não há resposta certa

O que há por trás dessa galerinha que se acha superior por não parecer gay é essa imagem aí em cima. O que chega da comunidade gay para fora dela não representa todos. NUNCA REPRESENTARÁ. E existe um medo até compreensível de que os outros vão achar que sou algo que não sou. Eles realmente acham que “todo gay curte boate”, por exemplo. “Logo, se eu não curto, não sou tão gay assim”. Ahm?!

O que é empacotado como “gay” e vendido para não-gays não representará todo o grupo, mesmo que seja numa série como “Looking” ou numa novela com beijo gay no final. Em uma carta aberta aos humoristas brasileiros, Alex Castro escreveu:

Quando uma pessoa gay é agredida com uma lâmpada na Av. Paulista, a equipe de criação do Zorra Total não pode levantar as mãos e se declarar inocentes. E nem quem assiste e ri. (fonte)

Eles está coberto de razão nesse ponto. E esses gays que rejeitam rótulos são tão vítimas desse tipo de coisa quanto todos os outros – têm medo de ter sua imagem associada aos pacotinhos e, temendo a ignorância alheia, agem como ignorantes.

Mas calma, talvez essas pessoas que se acham “menos gays” não achem isso por causa da mídia, mas se baseiam é nos gays ao seu redor mesmo, nos homossexuais que eles conhecem. Hum…

O que fazer se eu sou um gay “não-afeminado” então?
Bom, meu amigo, a primeira coisa é parar de se achar superior. Como aprendemos no primeiro item desse texto, se gosta de gente do mesmo sexo é gay e fim. Agir como hétero não te faz menos gay por definição. Talvez deixe sua vida mais fluida, menos caótica (pois atrai menos olhares julgadores e, assim, corre menos risco de levar surra de lâmpada na cara ou de canos enfiados na sua perna ou de Bíblia), mas não te torna menos gay.

A segunda coisa que você precisa fazer é SAIR DO ARMÁRIO PRA TODO MUNDO (e aqui tem umas dicas). Se você não gosta da imagem que as pessoas têm dos gays é responsabilidade sua mostrar que existem vários tipos de gays no mundo. Não tem nada que exija mais coragem de um homem do que ele viver sua verdade todos os dias o dia todo. Mas não esqueça que quando alguém falar “nossa, você nem parece gay!” isso não é um elogio.

Ser gay e querer ser menos gay é, com certeza, um problema. Mas não tem problema apenas discordar de algo que a então chamada cultura gay “impõe”. Eu não baixei o novo episódio de “Glee”, mas durmo tranquilo. Ninguém vai caçar minha carteirinha de gay por isso.

E no caso das vítimas desse preconceito bobo, os gays afeminados, cabem a eles também mostrar que são mais do que apenas isso. Cada um vai descobrir seu jeito de mostrar como.

Beijo gay pode sim, mas tem um porém
A importância de um beijo gay na novela é qual? Já teve beijo gay em tantos filmes, programas e séries…

Mas meus avós não baixam série, não têm TV a cabo, não vão ao cinema. (…) Se ele [meu avô] achou um absurdo, uma pouca vergonha, ou normal, ou bonito, ou diferente, a verdade é que ele viu para poder achar. Ele pôde ver. Contra a vontade ou não. Mas viu algo que faz parte da sociedade, mas que não fazia parte da casa dele. Um beijo gay na sala de estar da casa dos meus avós? Impossível. Até ontem. Se a Globo mostrou isso pros meus avós foi porque já não dava mais para esconder. (fonte)

É isso.

Claro que o ideal é um beijo entre gays ser chamado apenas de beijo (ninguém fala que no filme tem um “beijo negro”, né?), mas esse capítulo final de “Amor à Vida” foi, definitivamente, um começo. A estrada tá aí pra ser percorrida.

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O tal beijo gay: não vale reclamar que foi fraco. Mas vale perguntar: quando chamaremos apenas de beijo?

O problema é que foi o primeiro e, pra amenizar, foi preciso reforçar umas ideias polêmicas. Afinal, a vida é linda quando você é um gay forte, branco, bonito e rico, mas essa não é a realidade de muitos. Verdade, mas lembra o que falei antes? O que chega da comunidade gay para fora dela não representará nunca todos (especialmente se quem está escrevendo, atuando e transmitindo não é, “em essência”, gay). Você pode ter um programa de sucesso como “Cosby”, “Everybody Hates Chris” ou “My Wife and Kids” no horário nobre por várias temporadas, mas não pode dizer que esses programas “representam toda a comunidade negra”. É a mesma coisa aqui.

Não se chega a lugar nenhum respeitando de cabeça baixa uma cultura que te oprime. Mas, por mais heteronormativo que tenha sido o fim dos personagens da novela, temos que começar de algum lugar, certo?

Não somos uma minoria. Somos?
Sabe o que é mais legal do que fazer todo mundo ver um gay se beijar? É fazer todo mundo parar com essa palhaçada de tratar gays como marginais.

Quando dizem que negros ou mulheres ou gays são minoria, não querem dizer em quantidade no mundo. Mas sim em representatividade política. Mudanças profundas na sociedade são lentas, podem começar na novelinha, mas podem ser bem aceleradas se tivermos, no poder, políticos que lutem pelas causas gays. Pense nisso nas próximas eleições e fique de olho nos vira-folha que prometem uma coisa para os eleitores gays e exatamente o contrário para os eleitores evangélicos, por exemplo.

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Jean Wyllys: eleito em 2010 para mandato de deputado federal; Harvey Milk: primeiro homem abertamente gay a ser eleito a um cargo público na Califórnia, como supervisor da cidade de São Francisco; Amanda Simpson: uma das primeiras transexuais a integrar o governo federal dos EUA, no Departamento de Comércio.

Resposta genética?
Inclusive pois acredita-se muito que a formação de sua identidade sexual tem a ver com a cultura ao seu redor, ao tipo de coisa que você é exposto, ao tratamento recebido pelos seus pais. Mas, nos últimos anos, pesquisadores começaram a apontar que a formação da sexualidade acontece antes do nascimento – em parte pelos genes, mas também por fatores que atuam no desenvolvimento do feto. Ainda falta muito a ser desvendado, mas as evidências estão causando uma revolução no pensamento científico. E, se comprovadas, poderão subverter simplesmente todas as noções básicas que a sociedade atual construiu ao redor dos gays. (fonte)

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“Meu nome é Brock, tenho 7 anos de idade, e me considero do tipo diva”

Homofóbicos e religiosos homofóbicos gostam muito de argumentar que o mundo nunca teve tanto gay antes, pois agora estamos tratando “essa doença como algo normal”. Mas é justamente o contrário. É impossível ter dados técnicos, mas eu apostaria que o número de gays hoje e em 1489 é quase o mesmo, mas agora as pessoas se sentem confortáveis para serem elas mesmas.

Quem são os homofóbicos? Alguns estudos indicam que são pessoas conservadoras, rígidas, favoráveis à manutenção dos papéis sexuais tradicionais. (…) A homofobia reforça a frágil heterossexualidade de muitos homens. Ela é, então, um mecanismo de defesa psíquica, uma estratégia para evitar o reconhecimento de uma parte inaceitável de si.

Dirigir a própria agressividade contra os homossexuais é um modo de exteriorizar o conflito e torná-lo suportável. E pode ter também uma função social: um heterossexual exprime seus preconceitos contra os gays para ganhar a aprovação dos outros e aumentar a confiança em si. (Regina Navarro)

E eu com isso?
Quando eu comecei a perceber que gostava de meninos, foi muito dolorido. Não sabia o que era gay ou sexo, me achava uma aberração, achava que era o único assim no mundo. Ter gays em filmes e novelas, mesmo que agindo “como héteros”, já ajuda a naturalizar isso. Essa crescente inclusão de gays nos pacotinhos midiáticos pode (e acredito que vai) ajudar a economizar dor, desgaste familiar e dinheiro em terapia.

Não há nada de errado em ser gay, então não seja um babaca.

Pra quem quiser continuar a reflexão, outros três textos meus:
Gays que gostam de futebol
Pensando com Laerte
Daniela Mercury não me representa

Beijos (na boca ou no ombro, mas beijos)

Não queremos casar, queremos trepar

A lista de sinônimos para a palavra “casamento” nos dicionários é longa, mas sempre começa com (1) União legítima de homem e mulher; (2) União legal entre homem e mulher para constituir família. A ideia de gays se casando com papel passado e festa em capa de revista é recente.

No fim, a questão do casamento gay é um dos poucos itens na lista de diferenças entre direita e esquerda, por isso essa discussão fica mais política e calorosa a cada dia e mais gente é chamada pra opinar sobre o assunto – de celebridades a Jesus Cristo, cada um com seus grupos de seguidores, diferentes entre si e distorcendo suas palavras.

E aí chega outra questão: quando o casamento gay virou pauta no mundo gay? Segundo a ativista Yasmin Nair (em uma reportagem da BBC), esse ato se transformou em objetivo da comunidade na década de 1990, quando o movimento “emergiu do choque da epidemia de AIDS sem a sua antiga energia”. Sim, “casamento” é uma instituição conservadora por excelência, mas na época acho que havia uma vontade coletiva de monogamia, e ela foi tomando diversas formas com o tempo.

Tantas formas que chegou onde estamos atualmente: com uma parcela enorme de ativistas simplesmente loucos pelo casamento gay e uma parcela não se importando muito com a questão. O cartaz abaixo é um exemplo disso. Ele é da QACC – Queens Against Capitalism Crap, ou seja, “rainhas contra merdas capitalistas”. “Não queremos casar, queremos trepar. Tire seu casamento dos meus negócios”, diz.

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“Nós [já] temos casamento, é chamado de união civil e eu me alegro com o fato de que pessoas como eu, que são diferentes dos héteros, possam fazer algo que eles não podem”, diz Andrew Pierce, o colunista do Daily Mail que é contra o casamento gay – apesar de lutar pelos direitos da comunidade há alguns bons anos.

Quando você para e pensa, enxerga com clareza: realmente é um ato de viés conservador se casar, mas isso significa que não tem nada a ver com gays?

Muitas discussões que tive com amigos homossexuais sobre casamento desembocaram para essa discussão: que é muita ilusão achar que você vai ser feliz pro resto da sua vida com uma pessoa, que amor não resiste ao tempo, que amor não é algo duradouro, que monogamia é impossível etc. Essa ideia de felicidade eterna a dois é um clichê heteronormatizado? Sim. Isso faz dele uma coisa proibida para gays? De jeito nenhum. A discussão nunca foi nem deve ser o conceito, mas sim a possibilidade, a permissão.

Um exemplo: as feministas saíram de casa e queimaram sutiãs lutando pelo direito da mulher escolher o que quer para sua vida – inclusive pelo direito de escolher ser dona de casa. Esse desejo pode ser orgânico e super real em muitas mulheres, não é? Nenhuma feminista  invadiu casas no subúrbio, tirou o avental da mãe de família e a obrigou a fazer aulas de datilografia. A luta foi, e sempre será, pela escolha, a briga é para ter opções.

Por isso acho bobagem essa conversa de que “casamento não é coisa de gay”. Casamento devia ser pra quem quiser, tudo devia ser pra quem quiser. Um grande argumento dos pró-casamento entre pessoas do mesmo sexo é: “se você é contra casamento gay, não se case com um gay”. Esse argumento serve também para todo mundo que não vê graça nessa ideia de vida-a-dois-pra-sempre: se não acredita em casamento, não se case. Nem com um gay, nem com um hétero. E fim da discussão.

Então como explicar gays que se opõem a esse direito? Ódio internalizado por pressão? Talvez. Mas acho um tiro pela culatra, um papinho anarquista muito do frouxo. Devia fazer parte da nossa agenda, da nossa rotina mesmo, lutar pelo direito das outras pessoas, por direitos que nós mesmos nem vamos usufruir. Não é isso que é viver em comunidade, afinal?

Além do mais, vale sempre repetir: se o que os outros estão fazendo é bom para eles e não faz mal a ninguém, faz bem para todo mundo.

Comissão de Justiça aprova PEC da Felicidade

A chamada PEC da Felicidade foi aprovada, nesta quarta-feira (10), pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). De autoria do senador Cristovam Buarque (PDT-DF), a PEC 19/10 visa ressaltar que os direitos sociais elencados no artigo 6º da Constituição são essenciais à busca da felicidade. Ao justificar a proposta, Cristovam disse que a busca pela felicidade só é possível se os direitos essenciais estiverem garantidos. Depois de aprovada, o artigo dirá que “são direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. Apenas isso. Está faltando trabalho para esse povo, não?

Segundo recente estudo de economistas brasileiros, citado pelo senador, fatores como renda, sexo, emprego e estado civil influenciam no nível de felicidade das pessoas.

Então, vamos conversar, senador? É verdade, só quando essa lista toda estiver garantida é que dá para fazer festa e começar a ser feliz de verdade. Peraí. Alguém é feliz de verdade aqui?

A felicidade é o grande motivo pelo qual o ser humano busca ter um futuro. A felicidade é uma questão do corpo e do desejo e isso é algo bem amplo. Passa por todas essas coisas mundanas safadinhas que você está pensando, pelos atos fisiológicos que estão na Constituição e também pela arte como um todo. O negócio é que “felicidade” é um conceito inalcançável, extremamente particular e agora deram para rotulá-lo – até no sentido literal.

A gente vive num mundo que confunde felicidade com satisfação ou realização; e agora querem colocar isso por escrito. Essa mudança no texto implica que quem tem educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer e tudo aquilo, é feliz. É feliz. Gente, mas não pode colocar isso na Constituição! Não é assim a vida. Olha só: quantas milhões de vezes você viu alguém dizer que quando fizesse ou tivesse tal coisa seria feliz e que, quando conseguiu, não foi bem assim? Talvez você já tenha vivido isso. Eu sei que eu sim. Sempre coloco minha “felicidade” numa coisa que farei no futuro. Minha vida estará perfeita quando meu salário aumentar, quando eu comprar aquela roupa, quando eu arranjar um namorado, quando eu visitar aquela cidade, quando eu ler aquele livro, quando eu morar naquela casa. Aí você vai lá, consegue a coisa, realiza o desejo, e nada muda. Você se sente igual, talvez pior.

A confusão de conceito transforma a “realização” numa “felicidade encaixotada”. A publicidade diz que aquela coisa ali vai te fazer feliz e você vai lá e compra, não é? Não estou fora disso. Só acho essa PEC 19/10 uma babaquice pois dá a impressão que quer transformar obrigações do governo em “pacotes de felicidade”. Temo que se um país atrasado desse já sair achando que ter saneamento básico, por exemplo, é felicidade, não vai cobrar nada além disso do futuro, sabe como? O que está na constituição é o mínimo do mínimo do mínimo para se pensar em algum tipo de felicidade plena ou paz real.

Quem disse que felicidade é ter educação ou previdência? Vai saber. E se o trabalho que me faz feliz é contrabando de mulheres? E se o que me faz feliz é matar gente? E se o que me faz feliz é ver meus amigos gays se casando? E se o que faz a menina ali feliz é ela não precisar parir o filho do ex-namorado? Sim, eu sei que as primeiras coisas da lista são crimes, mas a outra metade da lista não está legalizada também não.

O repórter Josias de Souza escreveu no blog dele: “O que é preciso para roçar a felicidade? Todos procuram a resposta. Por ora, ninguém encontrou. Livros? Não, não. O conhecimento leva à reflexão sobre as mazelas humanas. Infelicidade certa. Esperança? Amor? Dinheiro? (…) Calma, seus problemas estão próximos do fim. A Comissão de Justiça do Senado aprovou a emenda constitucional da felicidade. A coisa vai ao plenário. Depois de aprovada, você talvez não ache a felicidade. Mas vai dispor de cobertura constitucional para continuar procurando. Boa sorte! Se encontrar, não seja egoísta. Avise ao repórter, ligue para os amigos, grite ao mundo”.

Entenderam?

Para refletir, senador, para refletir….

Para ouvir depois de ler: So-Called Chaos – Alanis Morissette

Hábitos alimentares são culturais, sabia?

O DJ e produtor musical Moby esteve no Brasil para participar do Festival UMF, que rolou no sábado passado, e aproveitou para falar de seu novo livro, “Gristle”, lançado em outubro e que trata do tema vegetarianismo.

“Gristle” é para qualquer pessoa que esteja repensando seus hábitos alimentares e as consequências da indústria que cria animais para alimentação. O músico se juntou ao ativista Miyun Park e reunu vários nomes para discutir o assunto – um grupo eclético que contém fazendeiros, atletas profissionais, cientistas, executivos de indústrias alimentícias e outros -, mostrando porque a indústria de abate animal desnecessariamente faz mal aos trabalhadores, às comunidades, ao meio-ambiente, à nossa saúde, aos nossos bolsos e, claro, aos animais.


Não comer carne é, para mim, uma opção mais saudável para melhorar meu estilo de vida já tão desregrado. Esse lado ético veio depois. Li que Paul McCartney parou de comer bicho depois de sair para pescar com os amigos. “Vi o peixe se debatendo dentro do barco, querendo se soltar do anzol. Percebi que a vida dele era tão importante para ele quanto a minha vida é importante para mim”. Como alguém que passou mais da metade da vida cantando hinos de amor e comunhão poderia olhar para seu almoço e fingir que aquilo ali não era um animalzinho antes?

É engraçado. Quando você para de comer carne você começa a se sentir aquele personagem do filme de terror que tem certeza que viu os fantasmas, mas ninguém acredita. “Será que só eu vejo que o discurso que se usa para justificar a exploração dos animais é o mesmo que, no passado, usamos para defender a escravidão e a desigualdade de direitos entre homens e mulheres? Será que as pessoas não percebem que hábitos alimentares são questões culturais e de costume? Será que não compreendem que, como seres desenvolvidos e pensantes, não precisamos repetir o que nos foi ensinado como certo, que podemos questionar as coisas?”

Por essas coisas, não comer carne virou um pequeno protesto. É a minha maneira de boicotar uma indústria que destrói o meio ambiente e explora, tortura e mata animais. O que gastam com cereais e água para engordar o bicho que será morto teria sido muito melhor utilizado alimentando humanos que estão passando fome. E não precisa ser nenhum gênio para calcular isso. Claro que não há interesse comercial em parar de alimentar os bichos e simplesmente dar para os pobres, mas é mais um grupo que não quero fazer parte – junto ao grupo dos que enxergam as coisas da natureza meramente como matérias primas.

Eu adoraria estar cercado de pessoas que pensassem assim, não me sinto desconfortável com que não o faz, mas eu também não quero entrar em discussões com quem não está interessado em ouvir. Trata-se de uma escolha pessoal que não diz respeito à opinião alheia. Quer dizer, vegetarianos têm tanta certeza que estão certos que alguns acabam ficando chatos. Mas antes de atacá-los ou de sair por aí declarando seu amor por bacon, pelo menos reflita antes sobre o que vocês está abrindo mão versus o bem que você faz para mundo e para você.

Para ouvir depois de ler: The Smiths – Meat is Murder

O voto gay?

Outro dia, li que Dilma Roussef fechou uma parceria com um pastor evangélico, cujo nome não recordo, para assessorar sua campanha direcionado a esse público, que representa 25% dos eleitores. Na proposta, ela assinou embaixo do que foi pedido por ele em contrato: não virão do poder Executivo leis que aceitem o aborto, o casamento gay e a adoção de crianças pelos cidadãos GLBT.

Isso me fez pensar: em assunto político, foi uma boa troca? Quer dizer, não sei quanto dos eleitores é gay, mas o número soma aos héteros favoráveis à causa. Talvez seja maior que esses 25%. De qualquer forma, o treco já foi assinado. O negócio é que ser à favor ou contra não basta para ganhar nem perder meu voto.

Um exemplo? Marta Suplicy, como sexóloga, saía por aí mandando beijos para a comunidade gay, mas foi a primeira a apontar a homossexualidade não-pública de um rival como objeto de chantagem e barganha.

Marina Silva tem algumas das propostas mais interessantes para o meio ambiente, por exemplo, mas já disse que não tem o casamento gay como “correto”, por causa de sua religião, mas que direito civil é direito civil e todo mundo devia tê-los. A declaração causou tanto frisson que abafou o que ela disse depois, e apenas a primeira parte de sua fala tomou os jornais. Portugal tem um presidente católico fervoroso que não teve medo de aprovar o casamento gay declarando aos quatro cantos que achava errado aquilo, mas que era uma questão de dar ao povo o que ele quer.

Acho que faz sentido e que poderia ser caso dela. Se tem gente por aí achando lindo o movimento gay, mas nos bastidores assinando contratos jurando que vai deixá-lo às moscas, talvez o voto em alguém abertamente contra fizesse mais sentido. Olha a que ponto chegamos! Enquanto isso, Serra se diz favorável, não assinou nada com ninguém e, cá entre nós, tem mais know how do que as outras candidatas juntas. Mas dá uma preguiça dele, né?

Só sei que nada vai mudar de verdade com nenhum deles. Casamento gay é uma pauta do momento, mas esse país aqui está longe de não ser preconceituoso – e não é legalizar a união civil que vai fazer isso. Contra, a favor, pouco importa. A lei já existe, é só o Supremo mudar a interpretação.

Semana passada, isso aconteceu na Argentina e ela tornou-se o primeiro país da América Latina onde casamento entre pessoas do mesmo sexo é permitido. Aí, o mesmo portal de internet que escreveu uma matéria ótima sobre o assunto, foi o que linkou o texto com um banner sobre o resultado de um jogo de futebol – numa alusão ao tima perdedor, indiretamente chamado de “viado”. E o melhor: várias pessoas ao redor, as mesmas que não se importam com sua orientação sexual e são super tranquilas e cabeça aberta, foram as primeiras a divulgar o negócio, rindo da piadinha que algum estagiário imbecil fez dentro do site.

Penso que, se hoje legalizassem o casamento gay, adoção de crianças por gays e leis anti homofobia, nada mudaria na minha vida. Não vou comemorar o passo da Argentina enquanto taxistas não pararem porque eu dei sinal de mão dada com meu namorado, enquanto existirem skinheads fazendo ronda na rua Augusta, enquanto todo mundo fizer piadinhas no seu aniversário de 24 anos, enquanto héteros têm vergonha de usar blusa rosa, enquanto os times de futebol perdedores forem xingados de “bicha”, enquanto tem gente com medo de ir para casa sozinho.

Se tem uma coisa que eu não tenho é esperança nessa merda de país

Faltavam poucos minutos para meia noite de sábado para domingo, quando eu e meu namorado fomos cutucados por um PM.
– Vocês estão se beijando?

Não soubemos nem mesmo que respostas dar. Afinal, era uma pergunta absurdamente óbvia. Sim, estávamos nos beijando, como estavam os outros dois casais na mesma pequena praça.

– Acho melhor vocês circularem.

Ficamos sentados no mesmo lugar com cara de quem diz: “você não pode estar falando sério”. Mas, sim, ele estava.

– Gente, mas tem outros dois casais aqui! – argumentei.
– Olha, vamos circular na boa? – disse o policial, naquele tom de quem faz uma ameaça enrustida caso você se negue a fazer o que ele pede.

“Não quero saber não, heim, Fulano. Manda circular”, gritou uma voz de dentro do prédio perto da referida praça. Então ok, fomos embora.

Descemos uma rua para pegar um táxi. Táxi que nunca passava. Em um buffet ao nosso lado estava tendo uma festa. “Você tem o telefone de algum tele-táxi?”, perguntamos ao porteiro.

– Aqui na rua passa táxi toda hora. Não é possível que você não pode esperar um pouquinho!

Sim, essa foi a resposta dele.

Olha, o porteiro não precisava ser simpático, não tinha a mínima obrigação. Mas bastava dizer que não tinha ao invés de ser grosso gratuitamente, certo?

Ser gay fez com que tentassem, mais de uma vez, me bater na rua. Talvez mais de 30 vezes me xingaram enquanto tudo que eu fazia era apenas andar. Agora, se nem na polícia eu posso confiar, gente cujo salário é pago com os impostos que eu pago e cuja função é me proteger, estamos todos fodidos. Não há esperança mesmo pra isso aqui que circularam e deram o nome de república democrática.

Mas, no país das bananas, da bolsa-gás e das pizzas, o texto acima surpreendeu alguém? É, infelizmente a mim também não.

Quem sou eu para falar de protetor solar?

Não sei se vocês está sabendo, mas esse tal encontro entre os presidentes do Brasil e do Irã envolve mais do que comércio. Como bem disse Alexandre Garcia, quando o assunto é política externa, Lula é da teoria de que é melhor não ficar isolado.

Nosso país, que já tem importante presença no Haiti, voltará ao Conselho de Segurança da ONU ano que vem e recebeu líderes de Israel e da Palestina. Lindo. Mas, por outro lado, hospeda um presidente deposto que não quer eleição, hospeda um italiano que pegou em armas contra uma democracia e agora recebe o Irã.

Enquanto aguardava a chegada do iraniano, Lula conversou com os jornalistas e confirmou sua intenção de propor uma partida de futebol entre a seleção brasileira e um time combinado de jogadores palestinos e israelenses.

Essa é a política externa diplomática do PT paternalista que eu conheço, minha gente. Pois Lula é gente do povo. Vamos pegar gente do Oriente Médio, um dos poucos lugares no mundo capazes de ser palco de uma terceira guerra mundial, e colocá-los para correr atrás de uma bola.

Admito: se a partida acontecer, ganhando a seleção brasileira, ganha o Brasil. Perdendo, ganham israelenses e palestinos, pois estão todos no mesmo time. Metáfora poderosa. Mas a imagem vai ser linda na gringa. Já vejo manchetes falando para os leitores prestarem atenção no Brasil. Olha só ele, o maior país da América do Sul, que não sabe fazer mais nada exceto chutar bola.

Sem contar que acho quase divertido ver Lula usar o esporte para amaciar teocracias. Tem povo mais competitivo que povo religioso?

Dou mais dois cliques no site e vejo que manifestantes fizeram um protesto contra a decisão da Anvisa de proibir o bronzeamento artificial. A instituição veio dizer que ouviu uma tal de Organização Mundial de Saúde alertar que uns estudos mostram que a prática estética aumenta em 75% o risco do desenvolvimento de melanoma – o mais grave tipo de câncer de pele.

Se no Brasil uma partida de futebol é mais importante que uma política externa sóbria e estão fazendo passeado à favor do direito ao câncer de pele, quem sou eu para escrever sobre voto consciente, corrupção, desvio de dinheiro e protetor solar?